Humberto Brito
Onde queremos viver
Vidas especiais
Há aqueles que não têm vocações e há os que vivem a vida inteira e não percebem que têm asas
01set2024 • Atualizado em: 30ago2024 | Edição #85Há uns vinte anos, perguntei a dois primos, irmãos, se queriam ter uma vida especial, seguir uma vocação. O mais velho não conseguiu disfarçar essa vontade. Não sabia bem como, mas desejava que a sua vida fosse singular. O mais novo disse o contrário. “Não. Para que quero eu uma vida especial? Quero é uma vida normal.” Fiquei estarrecido. Nunca até então colocara a hipótese de que nem todos temos vocações, nem todos aspiramos a vidas especiais. Alguns anos antes, um grande amigo decidiu alistar-se na Marinha. Quis saber o que o levava a alistar-se, sabendo as suas aspirações (estudava artes). “Todos temos que escolher uma vida”, respondeu-me, desalentado. “Porque não a Marinha?”
Depreendi que o pai o forçava a uma vida inteligível ou que desistira de querer uma vida que os pais não fossem capazes de perceber. O entendimento dos pais é para quase todos nós, sobretudo nas classes média e baixa, as grades de uma cela cuja porta esteve aberta todo o tempo. Há aqueles que desistem aos dezassete anos, há aqueles que não o percebem senão velhos demais. Depois, há aqueles, como o mais novo dos meus primos, cuja inteligência é conhecer-se. Quando alguém lhe perguntou o que queria ser quando crescesse, disse, não sei se por piada ou genialidade: “Quando crescer, quero ser reformado”. E há ainda aqueles como Gregor Samsa que nunca chegam a perceber patavina.
Ruth Gross defende que Gregor “se transforma num enorme verme para não ter que enfrentar a maçada de ir para o emprego” e que “a mudança no corpo é o único modo de evasão de uma existência estupidificante”. Eu sei. Parece uma leitura tirada da cabeça do meu primo, se a lermos mal. Tal explicação, só aparentemente teleológica (“Gregor transforma-se para não poder ir trabalhar”), é, de facto, psicológica (“o inconsciente faz Gregor transformar-se para não voltar a um emprego que secretamente detesta”). Psicologia aliás duvidosa, que, de resto, todos conhecemos, excepto aqueles que nasceram ricos. É o famoso problema de ter que acordar cedo para trabalhar, ou antes, de ter de trabalhar sob condições alienantes. O caso mais difícil de explicar é o daqueles que, sem contextos propícios, metem na cabeça não merecerem uma vida menos que especial e estão dispostos a sacrificar a vida por isso, talvez tolamente.
O entendimento dos pais é para quase todos nós as grades de uma cela cuja porta esteve aberta todo o tempo
No caso de Gregor, há a sugestão difusa de uma vocação (construir molduras?), no entanto, a questão da vida especial não chega a colocar-se, visto que é bloqueada pela carreira de filho. Nem mesmo diante das flagrantes desculpas de Herr Samsa sobre uma pequena poupança que omitira ao filho, Gregor não compreende, aliás recalca, o modo como vive rodeado de parasitas, a bem dos quais se deixa tratar como um verme. Transforma-se, portanto, no que já era. A sua metamorfose é uma revelação; e ele, pobre Gregor, jamais o percebe. Eis portanto três tipos de vidas, por ordem decrescente de bem-aventurança. Alguns não têm vocações. Alguns, têm-nas socialmente deslocadas. E “alguns Gregors, alguns Joes e Janes”, nota Nabokov, vivem vidas inteiras e simplesmente “não sabem que têm asas”. Qual deles é o seu?
Matéria publicada na edição impressa #85 em setembro de 2024.
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