Djaimilia Pereira de Almeida
Onde queremos viver
Uma senhora
Um intervalo estúpido e doce entre estar praticamente acabada e ter agora começado
01nov2024 • Atualizado em: 31out2024 | Edição #87 novDepois, anoitece, e fico sozinha. É preciso aprender a não morrer de tristeza neste mundo sujo. Milhares de pessoas, país fora, vivem como eu. Entro em conversa comigo. Colecciono afazeres mínimos, arrumo papéis, desisto, rego as plantas, dobro e arrumo roupas, desisto, maquilho-me e desmaquilho-me, ouço música.
Nenhuma tarefa ou invenção substitui a conversa. Leio, escrevo, vejo televisão, fumo. Ainda não percebi se as horas passam mais depressa ou mais devagar quando não se tem companhia, vou dando graças pelo barulho dos carros e dos aviões lá fora.
Toda a vida conheci adultos solitários, e tenho conhecido mais alguns. Confessam-me que detestariam ter de viver com alguém, partilhar o seu espaço e segredos.
Uma a uma, as solitárias que conheci, quase todas divorciadas, como um cortejo de fantasmas. A casa ao seu jeito, em regra muito arrumada, uma ordem de uma só pessoa, que em cada pormenor mostra a sua singularidade. A divorciada quase parece uma das categorias da instituição burguesa. O cabelo lavado apenas no cabeleireiro, a comida comprada fora, a pedicure, o café. Nuns casos, as solitárias tornaram-se amargas cabeças de um drama em gente em que não amavam ninguém. Nos casos felizes, são as pessoas mais contentes de que me lembro.
Fui ouvindo falar da fronteira após a qual a solidão se torna um hábito que já não queremos despir. O cruzar dessa fronteira é que assusta: custa imaginar sem tristeza que a pessoa junto da qual nos sentimos melhor sejamos nós. Ténues alterações no rosto (uma sombra atrás dos sorrisos) vão marcando a impaciência para com os outros, um certo avesso melancólico, nunca soube se podia confiar nos testemunhos de solidão alegre.
Vou-me descobrindo senhora, o que me aflige e alegra ao mesmo tempo. Ainda me lembro das primeiras crianças, entretanto adolescentes, que me trataram assim — A senhora quer? Desculpe, senhora. Metidos na nossa era de juventudes eternas, esquecemos que há bem pouco tempo uma mulher ou um homem da minha idade eram quase idosos.
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Djaimilia Pereira de Almeida
Hoje, ainda não é meia-idade, já não é juventude. Um intervalo estúpido e doce, entre estar praticamente acabada e ter agora começado. As amigas e eu — engordamos, adoecemos, temos sobrinhos. Os amigos e eu — conduzem motos, estão todos casados, ou sobreviveram a cancros.
Talvez a amizade seja uma cola que nos preserva a todos do cepticismo e da barbárie
Fui ao longo dos anos coligindo argumentos de amigos para se terem filhos, e muitos falavam da velhice e do medo de acabarem sozinhos. Entendo bem, agora, o receio desse horizonte. O medo de cair em casa que os mais velhos têm. A importância da força e da altura nas tarefas mais simples. A estrutura dada à vida por planos que apenas são inteligíveis se os fizermos acompanhados.
Onde encontrarão esperança os solitários? Então, o verdadeiro contraponto revela-se quando percebo que quem tem amigos nunca está só. Talvez a amizade não seja apenas a esperança última na vida de cada um, mas uma cola que nos preserva do cepticismo e da barbárie. Vou amando mais meus amigos, e percebendo que é com eles que tenho de contar. E assim brinco, na década dos quarenta, à arte bem-disposta de fazer amigos novos, gente real e imaginária, que me salva de um destino parvo.
Matéria publicada na edição impressa #87 nov em novembro de 2024. Com o título “Uma senhora”
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