Humberto Brito
Onde queremos viver
Página em branco
Avançar na escrita sem se envergonhar da própria sujidade constitutiva é sinal da maturidade literária
01dez2024 • Atualizado em: 29nov2024 | Edição #88 dezN’A metamorfose, Franz Kafka elabora substitutos do intérprete na história. É o caso do gerente, invadindo o apartamento dos Samsa para exigir uma “explicação clara” “em nome dos seus pais e do seu patrão”; e o da irmã, Grete, que assume “o estatuto de especialista sempre que a situação de Gregor era discutida”. É ainda o caso da velha empregada, que, sem repugnância, permanece “imóvel e admirada” vendo Gregor “a correr para trás e para diante, ainda que ninguém o perseguisse”.
Se estes podem ser vistos como substitutos do leitor, o corpo de Gregor é, sem dúvida, um tropo do texto ou da escrita. Por onde passava, “deixava um rastro daquela substância pegajosa”, “um líquido acastanhado”. Tais movimentos envolvem assim uma inscrição, que de resto prefigura a sua morte, ou a ausência do corpo que a produz. Evocam a mão que escreve. “[Sentindo-se] afogueado de vergonha e tristeza”, surpreendemo–lo “arranhando a pele do sofá horas a fio”, escrita que é já apenas a sua própria memória muscular (uma escrita fantasma) e que, quando se realiza, tem uma função puramente evasiva ou repressiva.
Trancado no quarto a escrever pelas paredes, Gregor vive, convertida em pesadelo, uma fantasia de Kafka. Se as superfícies desimpedidas, ao esvaziarem o seu quarto, são um tropo da tabula rasa, ou do vazio em face do qual entra em pânico um escritor deixado a si mesmo, aí se inverte, no pesadelo de ver desmantelada a função de filho, a fantasia de Kafka de se fechar a escrever sem obrigações, o apelo do vazio associado a virar as costas a uma identidade estável.
Evidente tropo da página em branco é, ainda, quase a terminar, o “chão imaculado da sala” através do qual, atraído pelo violino tocado pela irmã, “arrastava consigo fios, cabelos, restos de comida”. “Apesar do estado em que se encontrava, não se envergonhava de avançar”, “sem sequer se [admirar] por… ter tão pouca consideração pelos outros”. Por um lado, esta imagem é um emblema da maturidade literária: avançar pela página sem se envergonhar da própria sujidade constitutiva. Desfigurado pela profissão de filho, pela irónica metamorfose em insecto e, finalmente, por ferimentos e detritos, este avanço ou antes esta escrita implica a superação da auto-aversão que o impedia (e que impede tantos de nós) de avançar diante de terceiros.
Trancado no quarto a escrever pelas paredes, Gregor vive uma fantasia de Kafka
O que, por outro lado, levanta a pergunta: será a página em branco uma tábua jamais verdadeiramente rasa? No episódio de A metamorfose, o plano da sala enquanto símile da página “imaculada” faz-nos pensar na página em branco não enquanto espaço vazio, mas como espaço preenchido a priori por figuras vexatórias (família, público etc.). É uma idiossincrasia de Kafka e, quem sabe, de tantos outros. Não é provável que seja assim para todos. Basta ver como escrevem. Em lugar de demónios, a página em branco é previamente preenchida por figuras laudatórias, distinções, lisonjas. Nunca lhes ocorre que o outro lado é na realidade um horizonte de velhas empregadas, que nos lêem de boca aberta. Fartas de nos aturar, levantarão “bem alto uma cadeira” à espera da primeira oportunidade de nos atingir “em cheio as costas”.
Matéria publicada na edição impressa #88 dez em dezembro de 2024. Com o título “Página em branco”
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