Humberto Brito
Onde queremos viver
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Naquele dia, vesti-me para sair dessa personagem que me atribuíram e que aceitei como minha
01out2024 • Atualizado em: 30set2024 | Edição #86 outHá muitos anos, fui propositadamente mal vestido para uma ocasião académica para a qual deveria vestir-me melhor. Era a derradeira sessão organizada por mim de um projecto que me custou a cabeça. Em lugar de casaco e camisa, fui de calças rotas nos joelhos e ténis de pano cuja sola começava a descolar. (O meu pai teria ficado furioso.) Que ostentava esse gesto? Altivez, indiferença? Quereria eu, humilhando-me, apontar para a consciência da humilhação? Não sei. Protesto ou birra, não o compreendo bem até hoje. A meio da sessão, senti-me um tristonho fantasma de Chaplin. Fiz a minha função mal vestido e penso nisso com pena e orgulho.
Era preciso deitar fogo ao guarda-roupa da personagem que me atribuíram e que aceitei como minha. A fotografia foi, em parte, essa fogueira, na minha vida. Naquele dia, vesti-me para sair dessa personagem.
Alguns anos antes, sucedera o contrário. Primeiro dia no departamento. De bom ânimo, pus fato e gravata para o assinalar. Estava feliz. Até o facto da gravata ser objecto de um comentário jocoso. O que me vexou, não, o que me feriu. Era um bom amigo, mais velho e admirado, de quem, para dizer a verdade, não esperava outra reacção. Percebo que me julgara pronto para ser troçado por ele e que me enganara. Senti-me um tolo, e como nunca. Estava vestido para uma personagem que não coincidia com a minha importância e idade. Retrospectivamente, dá vontade de rir. A seguir ao almoço, no gabinete, tirei-a.
Este verão, num colóquio, reencontrei alguém desses anos, cuja juventude e vivacidade me ajudaram a compreender, no início da nossa breve amizade, o modo como caía, eu, numa não identidade, numa frouxa imitação. Isto, entre outros motivos, fez-me aos poucos detestar a ideia de mim mesmo na universidade que, sem dar por isso, me reduzira à situação de cópia e instrumento. E sobretudo fez-me detestar os danos permanentes na minha imaginação, na minha identidade e na minha forma de escrever, ou seja, fez-me detestar-me, detestar o tempo perdido e a seriedade equívoca — e a gravidade, oh meu Deus, toda a certeza que eu punha nas coisas; o que explica decerto aquele pequeno escândalo sartorial na despedida do projecto.
Cruzamos com figuras cuja função é serem avisos da vida, desde que se esteja atento
Todos nos vamos cruzando com figuras cuja única função é a de serem avisos da vida, desde que se esteja atento. A sua simples e generosa companhia deu-me a ver, naquela última fase, a série de coisas de que me tinha esquecido e de que me transviara. Em que me estava a tornar? Deu-me anos de vida, esse breve amigo, hoje colega. Nunca lho disse e nunca lho direi, porque fomos perdendo o contacto, foi-se afastando à medida que perdi utilidade, e hoje não somos amigos e provavelmente não voltaremos a sê-lo.
Que bom é vê-lo na personagem passados todos estes anos. Ali está ele, mais velho e pesado, de fato e gravata, na primeira fila, falando com outros académicos mais velhos e mais pesados, todos eles de fato e gravata. E eu aqui no fundo do auditório, de camisa de linho e ténis brancos, a perder cabelo, vendo nele, no que resta dele, o que é feito de nós. Trocámos de roupa. Tudo, de resto, se mantém, excepção feita à tenure e à alopécia. Não foi senão um quiasmo sartorial. Ele, como sempre, na roupa certa para a idade e eu, como sempre, anacrónico; vestido para a situação errada, na vida.
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Matéria publicada na edição impressa #86 out em outubro de 2024. Com o título “Obrigado”
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