Detalhe de Lake George Reflection (1921), de Georgia O'Keeffe (Reprodução)

Onde Queremos Viver,

Não estragar

Demos um passo e tentemos, se não salvar a Terra, pelo menos melhorar um pouco a vida dos outros

20dez2024 • Atualizado em: 08jan2025 | Edição #89 jan

Toda a gente sofre das mesmas maneiras. Cada um tem sua maneira de sair do sofrimento. No entanto, ninguém tem o direito de impedir outra pessoa de sair do sofrimento. Claro que existem modos de o fazer que são eles mesmos violentos em relação a terceiros e por isso condenáveis e até puníveis. Pensa no exemplo clássico descrito por Machado de Assis nas Memórias póstumas, o moleque Prudêncio que Brás Cubas desancara em criança e que mais tarde escraviza e violenta outro homem. “Era um modo que […] tinha de se desfazer das pancadas recebidas, transmitindo-as a outro.” É talvez a única salvaguarda para o que disse e repito. Ninguém tem o direito de impedir outra pessoa de sair do sofrimento.

Detalhe de Lake George Reflection (1921), de Georgia O’Keeffe (Reprodução)

Já o dever de ajudar é uma questão que divide a humanidade em três. Os que, perante o sofrimento alheio, se sentem sempre na obrigação de ajudar; os que jamais são bafejados pela responsabilidade por estranhos; e aqueles que fazem o que, quando e como podem. É ingénuo achar que podemos salvar do sofrimento toda a gente, ingenuidade cujo equivalente político é supor que se pode erradicá-lo. Tal não parece ser possível desde logo por haver formas de sofrimento com origem na felicidade alheia e formas de felicidade com origem na miséria dos outros. É complicado. Visto que saber ajudar não se segue do impulso de querer ajudar, as pessoas do primeiro tipo acabam, muitas vezes, por atrapalhar quem atravessa sofrimento, tal como acontece também com as últimas. Se a ajuda que sabemos dar for um impedimento, é preciso ter a bondade de sair do caminho, ainda que isso nos faça sofrer.

Há entretanto os implacáveis — e estão por todo o lado. Nada os comove. Nada excepto a aspereza, a dureza, a agressão, a humilhação. E nas letras isto tem consequências desastrosas. Confunde-se talento com violência, violência com sabedoria; ser-se criticamente exigente é ser-se “demolidor”, “desancar”; ser-se desagradável parece ter-se tornado uma virtude dos nossos dias e há em tudo isto um profundo apelo autoritário, que passa por “democracia”.

O modo como se vive já é político. Como nos tratamos na esfera pública conta

Não estou a dizer que são todos Prudêncios e nem que sê-lo justifica alguma vez a transmissão da violência. E também não estou a dizer que a violência não seja por vezes justificada ou necessária. Mas não mudem de assunto, ó vozes públicas, não deixarei que nos arrastem no vórtice das Grandes Questões da Actualidade. E obviamente não estou a falar das letras. Estou a referir-me a pequenas questões, a coisas muito mais próximas e quotidianas, àquilo que fazemos na vida comum, como nos tratamos na esfera pública, anonimamente. O modo como se vive já é político. Isso conta.

É um imperativo político, que não é prerrogativa da esquerda ou da direita, o de fazer o género de mundo que queremos habitar, o que propomos deixar à nossa passagem. A julgar pela internet, pela televisão, tudo indica que temos de nos contentar com “ilhas de gentileza”, cada vez mais raras. Demos um passo mais e tentemos, se não salvar do sofrimento toda a gente, pelo menos fazer a nossa parte: melhorar um pouco a vida dos outros. Não estragar.

Quem escreveu esse texto

Humberto Brito

É escritor, ensaísta e fotógrafo

Matéria publicada na edição impressa #89 jan em janeiro de 2025. Com o título “Não estragar”

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