Coluna

Djaimilia Pereira de Almeida

Onde queremos viver

Morrer de nostalgia

Em véspera de uma grande mudança, uma assimilação de passados e sonhos

19maio2023 | Edição #70

A minha mãe a mostrar-me o álbum de fotografias à distância, no WhatsApp, directa de Adis Abeba, o álbum projecta a ideia de família do avô, que o compôs. Assimilado, natural de Mbanza Congo, em Angola, preto por fora, adorador de Salazar, viria para Luanda sozinho, em criança. Começaria engraxador de sapatos à porta do tribunal. Ali aprendeu, observando, os gestos e modos dos brancos, até que um dia foi perfilhado por uma senhora branca. Depois, cursaria enfermagem. No álbum, trata-se já da sua família, em várias casas. Primeiro, no Menongue, depois, no Lubango, por último, em Luanda.

Esta é a Mamã, à frente da casa onde morávamos em Serpa Pinto, hoje Menongue. Província do Cuando Cubango, onde o T. nasceu. Esta é a Mamã junto ao Rio Cuebe. Esta foi nossa casa no Menongue. Olha aqui eu pequenina, com esse vestido de folhos que a minha mãe me fez. Meu pai estava em começo de vida, quem não tem sonhos? Olha esta aqui, estás a ver o nariz dele? Igualzinho ao teu, branca com nariz de preto. Nesta aqui tens os teus avós, ao lado da mangueira do nosso quintal. Aqui é a Mamã de óculos escuros, a fazer a sua pose. Quem é esta? A tua mãe bebé de laçarote na cabeça. Eu, no coro da igreja, aos dez. Sempre fui a única negra nas minhas turmas. Aqui, eu já gordinha com treze anos e peruca. E calças da moda, à boca de sino. Aqui, já em Luanda, na casa de um amigo, no Alvalade. Tinha dezassete.

Delírio doce e amargo

Esta sou eu, aqui somos nós, olha nós aqui. O álbum do meu avô é o delírio doce e amargo de um assimilado. A assimilação enquanto performance, ele cola fotos e acrescenta legendas, vai compondo o sonho que o moveu toda a vida, domingo a domingo — mais um pai de família do império, a cada tarde à volta do álbum, sonha acordar segunda-feira para ir trabalhar e ter renascido branco. Acontece-me com frequência. Começo a ler um livro e chego a uma frase que me trava. “A nostalgia ou o arrependimento podiam matar-te num sítio como a América, por isso eles apostaram apenas no dia de amanhã.” É Saidiya Hartman, em Perder a mãe. Refere-se aos avós, naturais de Curaçau, no Caribe. “Quando se tornou claro que nunca regressariam, os meus avós erigiram uma parede de meias-verdades e silêncio entre eles mesmos e o passado.” Fiquei suspensa na ideia de haver lugares onde a nostalgia nos pode matar. Reconheço na nostalgia uma máquina de propaganda, que serve o ressentimento. Saidiya fala de outra coisa. Há lugares nos quais só sobreviveremos se mergulharmos completamente, esquecendo o que abandonámos e quem fomos antes.

Há lugares nos quais só sobreviveremos se mergulharmos completamente

Pergunto-me se o outro lado de todo sonho não é sempre uma parede de silêncio, na qual projectamos, como num teatro de sombras, a ficção exigida pela nossa sobrevivência. Será que lançarmo-nos no sonho não exige necessariamente uma morte? Os manuais de direitos humanos mascaram esta morte com designações nada poéticas como “integração” ou “inclusão”. São formas eufemísticas de referir a dolorosas transformações humanas. Para não morrer de nostalgia, entrego-me à morte. O álbum do avô estava do outro lado da parede, da qual me foram chegando vestígios ínfimos, a que me agarrei como se disso dependesse a minha vida. Entendo agora que, se a migração implica uma forma de morte, caminhamos, nas nossas vidas, para essa condição migrante de auto-esquecimento. Sou, ao mesmo tempo, a avó que escondeu a verdade, a filha que nunca fez perguntas e a neta que investiga. Sobreviver à nossa história é parecido com sobreviver numa cidade implacável.
 


Guardar a cabeça, de Humberto Brito, é a outra parte de “Onde Queremos Viver”, coluna em conjunto com Djaimilia Pereira de Almeida

Quem escreveu esse texto

Djaimilia Pereira de Almeida

Escritora angolana, publicou Esse cabelo (LeYa).

Matéria publicada na edição impressa #70 em maio de 2023.