Onde Queremos Viver,

Guardar a cabeça

Em véspera de uma grande mudança, uma insónia com devaneios de morte

25maio2023 | Edição #70

Num quarto de hotel com vista para o fantasma de Kertész, penso no que disse a Brassaï quando este o visitou em Nova Iorque, em 63. “Estou morto”, afirmou. A sua inadaptação americana é uma tragédia mal conhecida. “Todos o julgávamos morto há trinta anos”, relata Szarkowski a respeito de um velho que visitou certo dia o MoMA para deixar dois sacos de compras cheios de fotografias. Aquele que vês é um morto.

Sou atravessado por um pânico sem forma. Para afastar o pensamento das palavras de Kertész, desvio a atenção para terem sido ditas em francês, je suis mort. Apavorado com a ideia da tua morte, da minha morte, da minha adaptação americana, da minha inadaptação tout court, nesse excesso mental que constitui a insónia, dou comigo a dizê-lo surdamente numa ladainha que a embale: “Je suis mort, je suis mort, je suis mort”. E um súbito, pálido amanhecer sobre a Washington Square acende através das cortinas um desenho na parede e ocorre-me — e não sei por que isso me aflige — que a frase foi dita em húngaro.

Alcanço o iPhone para pesquisar como se diz je suis mort em húngaro. Ajustando-me à luz do ecrã, que ilumina a fronha inconclusiva de um português tímido de meia idade, remelento, mal barbeado, professor de literatura de pijama, que pensariam meus alunos se me vissem nessa triste figura, leio o resultado da tradução (halott vagyok) que não sei pronunciar; e não pedirei ao Google para não te acordar com o som da minha morte em húngaro. Na véspera da entrevista, só quero que durmas suavemente.

Autocriação

O desenho de luz que a alvorada reconfigura captura a minha atenção ao se deslocar na parede; desisto de adormecer. Abro de novo o iPhone. Deslizo insensivelmente através de informação que não me prende, até me deter numa descoberta de investigadores japoneses.

Depois de separar a cabeça do corpo, num processo de várias horas, a lesma-do-mar Elysia marginata desenvolve gradualmente um novo corpo inteiro. Ao sétimo dia, o coração regenera. Segue-se o resto do corpo (dia 14), até que a regeneração se completa (dia 22).

A natureza a iludir a natureza! Estes pequeninos monstros livram-se de si mesmos para não se deixarem apanhar pelo passado. Haverá para esta astúcia biológica um certo limite de ciclos? Poder eu mesmo viver a exemplo. Separar-se de si. Da cabeça madura, fazer crescer um corpo novo.

Os pequeninos monstros livram-se de si mesmos para não se deixarem apanhar pelo passado

Penso na imagem do homem que se arrasta pelos cabelos para se criar. Os professores de lógica veem esta imagem de Nietzsche como a caricatura de um paradoxo optimista, da autocriação. Não podemos falar em autocriação, dizem, se o resultado já estava contido no criador. É bom de ver que o novo corpo dos Elysia é igualzinho ao anterior. “É bom de ver…” Recrimino-me por escrever assim. O caminho da autocriação passa por me livrar destas fórmulas; em resposta à minha excessiva dureza crítica, rodas para o lado certo da cama e o desenho de luz na parede vem coincidir sobre o contorno do teu rosto sereno e benigno.

É quando vejo que estamos realmente ali; que a véspera passou. Apenas por mais algumas horas, dias, semanas, apenas por mais alguns anos, tudo o que temos é a graça da bola volante que não sabemos de que lado da rede vai cair. Pode cair do lado de Kertész. Sofrer por isso um pouco menos; jogar fora a roupa ruça na mudança de estação, ou, como faz a lesma marinha, largar o corpo, o luto, o trauma — isso, sim, importa; mas que se guarde a cabeça; guardar a cabeça para a erguer.
 


Morrer de nostalgia, de Djaimilia Pereira de Almeida, é a outra parte de “Onde Queremos Viver”, coluna em conjunto com Humberto Brito

Quem escreveu esse texto

Humberto Brito

É escritor, ensaísta e fotógrafo

Matéria publicada na edição impressa #70 em junho de 2023.