Coluna

Djaimilia Pereira de Almeida

Onde queremos viver

Gaveta desarrumada

Resisto à tentação cega de imaginar que sou a razão de ser da cidade, da cara das nuvens

01set2024 • Atualizado em: 30ago2024 | Edição #85

Regressar à vida depois de se ter estado doente depende dos lugares onde se andou. Chegada da cidade perfeita, Lisboa parece uma gaveta desarrumada. Além, Lisboa era uma rima: as cores das roupas nos estendais conjugavam com as cores das roupas dos transeuntes, as matrículas dos carros, os reclames das lojas, as canções da rádio, respondiam às deixas do meu pensamento, passando pela rua todos me olhavam fixamente. Quem serei? Rainha, imperatriz, baronesa de esplanada — culpada? Os turistas no Jardim da Estrela não são, afinal, figurantes do cinema das minhas boas-vindas. Os sinos da Basílica da Estrela não tocam porque acabo de ter uma ideia. A rua de São Paulo é a Rua de São Paulo. E, se assim é, talvez eu seja Djaimilia. Vagueio, resisto à tentação cega de imaginar que sou a razão de ser da cidade, da cara das nuvens ou das modalidades de transporte. Descubro que, enfim, estou só apaixonada.

Jardim da Estrela (Câmara Municipal de Lisboa/Reprodução)

A loucura revela-me que há uma beleza em toda a gente, algum encanto que sou eu a ver o meu desejo com os olhos da aflição. A barriga de quatro meses da moça negra em saia justa, os pés calejados da senhora que come sempre guardanapos, a mão do motorista de Uber a dançar no ar, vidro aberto, enquanto ele espera que o semáforo passe a verde, as pulseiras da senhora da bengala. Onde vivo, vou da arte de estar à esplanada do Estado Novo à etiqueta do brunch nova-iorquino subindo meia calçada. Tudo pode ser engraçado, se só atentarmos em detalhes. Os septuagenários fumam cigarrilhas, deploram os novos donos brasileiros da mercearia. Lá em cima, só se fala inglês, vá-se lá entender.

E a escritora passa, a rogar a são Martinho de Porres, dá-me a mão, dá-me saúde. Os domingos de agosto, longe do carnaval do Chiado, são marroquinos.

A loucura revela-me que há uma beleza em toda a gente, encanto que sou eu a ver o meu desejo com os olhos da aflição

Resignada, escrevo uma carta de amor a Raul Brandão: Perdi os meus olhos, R.. Sei que foi entre o Cais do Sodré e o Jardim da Estrela. Ouviu deles? Não é não saber onde os pus, querido. É ter perdido os olhos com que nasci para sempre. E, se calhar, os olhos que lhe digo ver na calçada são os olhos de mulheres e homens como eu, que deixaram cair os olhos na rua. E hei-de andar com a cara no chão, a ver qual daqueles mil são os meus, como quem procura uma agulha no deserto. Desesperar por si vem-me cegando, meu amor, espero que não me leve a mal, e tenho logo raiva de dizer o que acabo de dizer, mas consola-me ao mesmo tempo saber que, no fundo, o R., o meu cachimbo por acender, a chama que lhe suplico com estes enganos de cadela, toda esta conversa rendada que ficou acima, tudo isto sou eu a pedir a Deus que me leve ou que me ajude, porque preciso de um amigo para a vida toda, como já tive, e perdi-o, quem mo dera encontrar. E eu só queria, sabes o quê R.?, perdoa-me se te trato assim, mas sei que não me vais ler, o que eu queria e venho suplicando em vão, era ouvir o meu silêncio com Deus, o silêncio sem cara nem voz entre Deus e mim. Era essa a minha esperança: que o fogo do cachimbo me desse de volta a minha conversa com Nosso Senhor, e eu o ouvisse só no fumo que o cachimbo lança, volteando, sem nada responder. 

Quem escreveu esse texto

Djaimilia Pereira de Almeida

Escritora angolana, publicou Esse cabelo (LeYa).

Matéria publicada na edição impressa #85 em setembro de 2024.

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