Coluna

Humberto Brito

Onde queremos viver

Fora da identidade

A função da literatura enquanto janela para outras vidas foi praticamente substituída pelo streaming

02nov2023 | Edição #75

Talvez a literatura esteja em vias de extinção. Pelo menos, a tradição romanesca, em que alguém se coloca imaginativamente em perspectivas e circunstâncias fora da sua jurisdição imediata — talvez a literatura da alteridade e da despersonalização, a literatura, digamos, fora da identidade, esteja a morrer. Refiro-me àquele esforço técnico mas também moral e empático por transcender as inibições da própria perspectiva, por transcender os traumatismos que a configuram, por se tentar ver e fazer ver o mundo através de outros. A julgar pelo Zeitgeist, ou nos cansámos desse jogo, ou ele tem novas regras, ou cansámo-nos dele porque tem novas regras.

Claro que ler cansa. A função da literatura enquanto janela para outras vidas foi praticamente substituída pelo streaming e aliás pelo feed. De livre vontade e em constante performance, sacrificamos a esfera privada no Altar de Zuckerberg ou de deuses equivalentes. Segue-se uma interioridade oca e teatral, que domina o presente, as narrativas contínua e pornograficamente sinceras uns dos outros a toda a hora: uma sinceridade agressiva e vigilante, aliás, um efeito de sinceridade, de tão conformista, uma sinceridade ajustada a templates, convencional.

De livre vontade, sacrificamos a esfera privada no Altar de Zuckerberg

Mas nunca tudo é mau. Talvez o esgotamento da literatura como a conhecíamos resida menos no jogo em si do que na homogeneidade dos praticantes. Essa homogeneidade perdeu todo o encanto e não era sem tempo. Pessoas não-brancas, não-cis, têm finalmente uma palavra a dizer sem a necessidade da humilhação e da auto-anulação: têm (aos poucos e a custo) visibilidade e acesso. Daí um sem-número de vozes reaccionárias parecer empenhado em confundir a extinção da homogeneidade com a da literatura, tal como um sem-número de vozes revolucionárias se empenha em confundi-la com a supressão da empatia projectiva. Já se sabe que as guerras culturais são a forma mais preguiçosa de ganhar a vida.

Claro que os traumatismos que te constituem são indissociáveis da tua classe, cor, género e orientação. Claro que tens de escrever sobre isso — porque dói e porque é importante para outros. Não se segue que toda a literatura do que dói e é importante para outros seja intrinsecamente duradoura enquanto expressão literária. Também não se segue que seja intrinsecamente menor. A fase heróica da visibilidade (que não por acaso acompanha o advento das redes sociais) não poderia acontecer na ausência de narrativas de afirmação e auto-celebração, não poderia acontecer sem uma literatura da identidade, marcada por uma certa continuidade autobiográfica. Que partilhe com a proto-literatura dos feeds uma poética da sinceridade não a torna melhor nem pior. (Você já leu Rousseau?). Se a democratização da literatura avançada traz consigo a democratização da mediocridade, tanto melhor. Nem só escritores brancos não prestam. 

E também não se segue, como muitos se atrevem a julgar, que toda a literatura de identidade seja de identidade. Tal como Don Quijote não é sobre a identidade de la Mancha, a literatura com origem na minoria e não no privilégio não é intrinsecamente identitária, ainda que conte as suas histórias. Segue-se, antes, o pânico do escritor branco de meia-idade de não ter uma identidade viável. Esse pânico, cujo efeito ainda não foi descrito pela medicina, sim, é interessante. Dá vontade de rir e de vomitar.

Quem escreveu esse texto

Humberto Brito

É escritor, ensaísta e fotógrafo

Matéria publicada na edição impressa #75 em outubro de 2023.