Coluna

Humberto Brito

Onde queremos viver

Encontrar, depois, procurar

Não haverá sempre, sob a relação com alguém, outras personagens disfarçadas dessa pessoa?

26set2023 | Edição #74

Como sabemos num sonho que uma pessoa é essa pessoa? Como um cão conhece o cobertor? Enquanto o sonho dura, não existe dúvida. Ao acordar, morre a confusa memória de não haver dúvida, o morno resíduo da sua identidade inequívoca: uma vibração erótica, desinibida, que escapa entre os dedos das frases no instante em que a tento descrever. Acontece então um confronto com a admissibilidade alucinante do que há momentos nos embalava. A sua inviabilidade acontece do lado de cá da linguagem. Ou será esta uma cortina sobre janelas para o que não sabemos ver?

A linguagem está para os sonhos como as mãos para o peixe-rei. Em pequeno, achava poder pescá-los à mão, tocar a sua passagem. Fingia-me morto a vê-los circundar-me em movimentações velozes, percebendo na superfície das pernas a sua natação cintilante, carícia líquida e fantasma que imagino avistar na margem de lá deste mesmo rio da minha infância, da varanda dos quarenta. Mas a teimosa agilidade do autor só dispersava o cardume. A faculdade da linguagem é ter a água pela cintura em relação a si mesmo, a vida inteira.

A linguagem está para os sonhos como as mãos para o peixe-rei. Achava poder pescá-los à mão 

Já a sonhar os episódios sucedem-se ao mesmo tempo no plano do cardume e no ponto de vista da mão que o procura. Pessoas sonhadas podem assumir dois ou mais corpos, duas ou mais faces. Corpos e faces podem até alternar e revezar-se na mesma personagem e até em nós próprios sem que surjam grandes dúvidas de identidade. Ou a haver dúvidas, se por exemplo sonhares que te vês ao espelho ou que te tocas, ou que tocas noutros e algum elemento não é tal como te lembravas, mas estranho e perturbador (e qual o misterioso referente desse estranhamento? a vida?), a sua identidade entra em suave risco e a certeza estremece e não colapsa, apesar das metamorfoses.

Portanto, a definição de “pessoa” não se coloca senão do lado de cá. Nos sonhos, uma única pessoa pode aliás ser a pessoa a e a pessoa b, há uma licença e latitude acerca do outro que aparentemente se esfuma no plano da vigília. Pensando bem, não será assim, tantas vezes, também na vida, nas relações? Não haverá sempre, sob a relação com alguém, outras personagens disfarçadas dessa pessoa? Amar é um bicho de algumas cabeças. Talvez o teu corpo seja um revestimento para as personagens correspondentes na sombra da vossa relação. Pode ser que amar uma pessoa seja libertá-la e libertar-se desse elenco despótico, dessa companhia de espectros. Claro que é preciso antes que a encontres. Depois, tens de a procurar.

Antes, é como fotografar: um milagre por tentativa e erro, que acarreta desânimo e tenacidade, uma esperançosa entrega ao não-eu. A vida de solteiro pode retrospectivamente fazer lembrar um frustrante caminho na escuridão em busca de quem nos perdêramos em vidas esquecidas. Apontas a lanterna para sucessivas silhuetas, que tomas por alguém que não saberias reconhecer até a veres com violenta certeza, ou até te afeiçoares a substitutos. (Bem-aventurados aqueles que sabem a diferença.) De onde vem no entanto a certeza? Sabe-se talvez do mesmo modo que se sabe num sonho que uma pessoa é essa pessoa, mesmo que não pareça. A seguir, é como escrever. Não “construir a personagem”, antes, deixar que se mostre sem pressa na sua beleza específica, nas suas falhas, na sua particularidade.

Quem escreveu esse texto

Humberto Brito

É escritor, ensaísta e fotógrafo

Matéria publicada na edição impressa #74 em setembro de 2023.