Onde Queremos Viver,

Constanças

Reprimir o choro é coibir um confronto consigo mesmo e com a dureza da vida adulta

30jul2024 • Atualizado em: 02ago2024 | Edição #84

A meio de um capítulo de P., toma-me um leve pânico associado a um pensamento. É a constatação crua de que os meus pais não vão viver para sempre. A sua morte paira agora no horizonte e eis que desato a chorar. Aquele pensamento súbito, suscitado pela narração de vidas que me são perfeitamente estranhas e sem relação com a minha origem, fez-me chorar deflagradamente. Vamos ficar sozinhos, Sara. Vamos ficar sozinhos, Djaimilia. Não tarda, restamos nós, meia dúzia de amigos e um bando de estranhos na vida. E vem um remorso cortante de não sermos pais porque era preciso continuar a ler e escrever.

Detalhe da pintura Waterloo Bridge, Sunlight Effect (1903), de Claude Monet. Óleo sobre tela

Momentos assim têm sucedido este ano. Do nada ou através de objectos externos, acontece um sopro frio e difuso às costas do eu que desencadeia uma convulsão, um repentino fantasma, e vejo-me a soluçar. Choro um bocado, depois passa.

Há um mês, perdi um tio. Chorei–o a valer; e através da cidade onde cresci e na qual vivíamos, antes de Nova Iorque, chorei os últimos anos felizes, em que nos reaproximámos. Sua viúva, minha tia, confessava-me no dia do enterro, que chorara a noite inteira, mas nunca diante da filha, para não a preocupar. Sua filha, minha prima, confessava-me em lágrimas que só chorava às escondidas da mãe, para não a preocupar. Mãe e filha que por amor uma à outra jamais se vêem chorar. 

Fingimo-nos fortes sem reparar na força crua, convulsiva e curativa que vem do acto de chorar em si mesmo, ou antes, do acto de se permitir chorar diante de quem amamos ou até do desdém alheio —
como acontece neste preciso instante, visto que você aí é duro, nunca sofreu, nunca derramou uma lágrima, certo? Pode ser que exista contudo o choro fraco e o choro forte. Este, digamos, absorve aquele. É a expressão adequada de um confronto adulto e implacável com a nossa geral impotência perante algumas tragédias, infâmias e revezes; a aceitação da perda irreparável. Reprimir o choro, quando ele vem com este selo, é coibir um confronto consigo mesmo e com a dureza da vida adulta. Cobardia é fazer de conta.

Qual, todavia, o lugar do choro na presente forma de vida? De um lado, temos a pornografia do trauma. Narcísico, viral, a lamúria postiça e carreirista a que subjazem uma certa preguiça e cobardia infantis, um horror ao confronto e ao atrito, a que chamávamos “vida”. Do outro, temos um cinismo azedo e má-fé a respeito da fragilidade alheia, da empatia: uma cultura da pele grossa, uma indiferença pelo sofrimento do semelhante sob a qual dorme quase sempre uma nostalgia pela agressão desinibida, a que querem chamar “liberdade de expressão”. Todas as nossas emoções são hoje devidamente autorizadas por escritórios de advogados.

Fingimo-nos fortes sem reparar na força crua, convulsiva e curativa que vem deste acto

Lobo Antunes tem várias vezes admitido chorar através da própria escrita. Não é teatro. São muito raras e objecto de sarcasmo, nas elites, admissões públicas de choro. A elite chora na terapia e nos funerais. A aversão geral ao pranto espontâneo não deixa de ser irónica, na era da terapia. Em contrapartida, chora-se em troca de views. Se é para sofrer, consulte um especialista.

Um pessimista dirá que as grandes questões privadas estão em vias de extinção, num mundo puramente público e político. A mim, parece-me apenas que nos tornámo-nos minha tia e minha prima, Constança e Constancinha, chorando às escondidas uns dos outros, para não melindrar o algoritmo. 

Quem escreveu esse texto

Humberto Brito

É escritor, ensaísta e fotógrafo

Matéria publicada na edição impressa #84 em agosto de 2024.

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