Onde Queremos Viver,
Constanças
Reprimir o choro é coibir um confronto consigo mesmo e com a dureza da vida adulta
30jul2024 • Atualizado em: 02ago2024 | Edição #84A meio de um capítulo de P., toma-me um leve pânico associado a um pensamento. É a constatação crua de que os meus pais não vão viver para sempre. A sua morte paira agora no horizonte e eis que desato a chorar. Aquele pensamento súbito, suscitado pela narração de vidas que me são perfeitamente estranhas e sem relação com a minha origem, fez-me chorar deflagradamente. Vamos ficar sozinhos, Sara. Vamos ficar sozinhos, Djaimilia. Não tarda, restamos nós, meia dúzia de amigos e um bando de estranhos na vida. E vem um remorso cortante de não sermos pais porque era preciso continuar a ler e escrever.
Momentos assim têm sucedido este ano. Do nada ou através de objectos externos, acontece um sopro frio e difuso às costas do eu que desencadeia uma convulsão, um repentino fantasma, e vejo-me a soluçar. Choro um bocado, depois passa.
Há um mês, perdi um tio. Chorei–o a valer; e através da cidade onde cresci e na qual vivíamos, antes de Nova Iorque, chorei os últimos anos felizes, em que nos reaproximámos. Sua viúva, minha tia, confessava-me no dia do enterro, que chorara a noite inteira, mas nunca diante da filha, para não a preocupar. Sua filha, minha prima, confessava-me em lágrimas que só chorava às escondidas da mãe, para não a preocupar. Mãe e filha que por amor uma à outra jamais se vêem chorar.
Fingimo-nos fortes sem reparar na força crua, convulsiva e curativa que vem do acto de chorar em si mesmo, ou antes, do acto de se permitir chorar diante de quem amamos ou até do desdém alheio —
como acontece neste preciso instante, visto que você aí é duro, nunca sofreu, nunca derramou uma lágrima, certo? Pode ser que exista contudo o choro fraco e o choro forte. Este, digamos, absorve aquele. É a expressão adequada de um confronto adulto e implacável com a nossa geral impotência perante algumas tragédias, infâmias e revezes; a aceitação da perda irreparável. Reprimir o choro, quando ele vem com este selo, é coibir um confronto consigo mesmo e com a dureza da vida adulta. Cobardia é fazer de conta.
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Qual, todavia, o lugar do choro na presente forma de vida? De um lado, temos a pornografia do trauma. Narcísico, viral, a lamúria postiça e carreirista a que subjazem uma certa preguiça e cobardia infantis, um horror ao confronto e ao atrito, a que chamávamos “vida”. Do outro, temos um cinismo azedo e má-fé a respeito da fragilidade alheia, da empatia: uma cultura da pele grossa, uma indiferença pelo sofrimento do semelhante sob a qual dorme quase sempre uma nostalgia pela agressão desinibida, a que querem chamar “liberdade de expressão”. Todas as nossas emoções são hoje devidamente autorizadas por escritórios de advogados.
Fingimo-nos fortes sem reparar na força crua, convulsiva e curativa que vem deste acto
Lobo Antunes tem várias vezes admitido chorar através da própria escrita. Não é teatro. São muito raras e objecto de sarcasmo, nas elites, admissões públicas de choro. A elite chora na terapia e nos funerais. A aversão geral ao pranto espontâneo não deixa de ser irónica, na era da terapia. Em contrapartida, chora-se em troca de views. Se é para sofrer, consulte um especialista.
Um pessimista dirá que as grandes questões privadas estão em vias de extinção, num mundo puramente público e político. A mim, parece-me apenas que nos tornámo-nos minha tia e minha prima, Constança e Constancinha, chorando às escondidas uns dos outros, para não melindrar o algoritmo.
Matéria publicada na edição impressa #84 em agosto de 2024.
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