
Onde Queremos Viver,
Chegada
Vejo agora os habitantes de Lisboa como uma comunhão entre primos que não sabia que tinha
30jul2024 • Atualizado em: 02ago2024 | Edição #84Chegada de Nova Iorque, achando-me sem abrigo, tenho dado com toda a espécie de amigos: um jovem cabo-verdiano, unhas sujas, filho de funcionários públicos, crava–me um cigarro na boca do metro do Terreiro do Paço. É o instante em que me encontra o meu único irmão do mundo. Aproxima-se de mim, porque sou negra, e me vê perdida e desolada. Conta-me que é uma pessoa viajada. Propõe oferecer-me o colar dourado que comprou para a namorada: ponho-o ao pescoço e temo sufocar, de tal modo é apertado. Está para o senhor senegalês (no Cais do Sodré), que me impinge uma pulseira de búzios para o pé e óculos Gucci falsos, para o cigano português que na rua Augusta me vendeu uns Ray-Ban falsos.
Que floresta de enganos é esta Lisboa pós-Covid, onde, de repente perco o medo da vida. Nem o senhor Fernando me assusta, ao volante do táxi que me traz por Alcântara, a mim que achava todos os taxistas racistas.
Vejo agora os habitantes de Lisboa como uma comunhão entre primos que não sabia que tinha, comunhão que se estende dos que vêm de fora aos que sempre aqui estiveram.
Hospitalidade é recebermos dos estranhos — de todos — o que os nossos não nos deram. Porque só a Deus se aplica a palavra “estranho”, só Deus é todos.
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Sem-abrigo me vi pela primeira vez dormindo na rua, descalça, quase nua, tremendo de frio (tal o meu Capitão Celestino, rendido aos abraços da mulher fantasma que jogara do navio), e foi à raiz de uma árvore, no Jardim da Estrela, que me achei diante de uma amiga.
Por isso àquela comunhão a que aludo — Lisboa — pertencem não só humanos, mas toda uma esfera de seres, pessoas, cães, gatos, árvores, anjos, demónios e também nuvens, o vento nascido do rio, a visão da ponte, não é Ecologia, mas o abraço do Cristo do lado de lá da ponte visto do lado de cá.
Hospitalidade é recebermos dos estranhos o que os nossos não nos deram
No Martinho da Arcada, três empregadas negras de olhar severo guardam a memória do Pessoa enquanto servem sopa. Salvam-me as montras da rua do Ouro, que continuam engraçadas, com os seus meninos a comer chocolate importado e a promessa de viagens e casamentos, em lojas de malas e de noiva triste. Haverá melhor cidade para perder o sapato, penso, ao chegar perto dos homens e mulheres que dormem sob as arcadas do Terreiro, Lisboa alegre e triste. Tempo demais para pensar que não tenho onde passar a noite, como me lembra a senhora que limpa a casa de banho do terminal de cacilheiros, na manhã seguinte: quem trabalha tem mais que fazer e não chora fantasmas, limpa o que os outros borram sem vagar para indagações.
A noite Atlântica salga-me a vista, depois da madrugada em claro, batendo a portas de hotéis encerrados, ligando a amigos que não abrem, galgando a Avenida da Liberdade, tornada Evereste pedregoso. Estou como o meu primo, fugido da casa materna, que um dia bateu à porta da minha avó, dizendo, “Avó, por favor, só preciso de uma sopa e de uma cama lavada”.
Que ironia que aqueles que ninguém vê sobrevivam a vender óculos escuros e amuletos contra o mau olhado nas esplanadas de Lisboa. A fortuna dos sem-abrigo é, como lembrou o cineasta Jonas Mekas, indicarem-nos o caminho de casa e curarem-nos da cegueira ou, pelo menos, aliviar-nos da intensidade do sol contra a vista: “Nós amávamos-te, mundo, mas fizeste-nos coisas abomináveis”.
Matéria publicada na edição impressa #84 em agosto de 2024.
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