Djaimilia Pereira de Almeida
Onde queremos viver
As margens da língua
A literatura não se define pela origem dos seus autores e das suas personagens
01dez2024 • Atualizado em: 29nov2024 | Edição #88 dezUm leitor disse-me, há alguns anos, que a literatura escrita por africanos é “uma literatura de gueto”. Talvez aludisse ao facto discutível de que os autores negros estão reduzidos à autoficção, de que esse é o único género de história que estão habilitados a contar ou que, escrevendo sobre personagens negras, abraçam o lugar marginal que lhes cabe: contar dos seus corpos, da sua parte da cidade, entre nenhures e a Quinta do Mocho, para desinteresse de leitores como ele.
Mas a literatura não se define pela origem dos seus autores e das suas personagens. As pessoas podem viver nas margens, mas não somos o lugar onde nos arrumam nas cidades. Não existem pessoas-gueto. A tristeza, a melancolia, a alegria, o espírito humano, a autoconsciência, a interioridade, não são categorias raciais nem sócio-económicas. Só eu estava convencida, porém, e só tarde demais o questionei, que sabia qual era o meu país: o bairro suburbano onde cresci, os brancos e os negros que amo, mas também os livros que me fizeram, os meus vizinhos, a paisagem da minha infância e de toda a minha vida. Será sinal de colonização interiorizada, desistência, logro ou ingenuidade? Alguns dirão que a nacionalidade é irrelevante e que não existem pátrias nem nações. Acarinho hoje o facto de não saber de onde sou.
Anseio pelo tempo em que todos sejamos chamados a discutir em público todos os temas e que a representatividade não seja concebida a preto-e-branco, de modo a que os poucos negros, romani e asiáticos admitidos na discussão pública o são para discutirem temas raciais por pessoas que não se lembrariam de perguntar-lhes o que pensam sobre outros temas. Anseio por um mundo de gente que se lê mutuamente, discute e aprende uns com os outros, da dissensão e da discussão aberta e realmente diversa, em que, postos a par, cultivássemos o interesse de imaginar como é a casa do vizinho.
Anseio pelo tempo em que a representatividade não seja concebida a preto-e-branco
“O teu lugar é a nossa língua. Tens de habitá-la como quem habita um bairro, uma cidade, um país”, disse-me uma pessoa amada. Talvez seja verdade. Nenhuma paisagem se pode substituir às palavras, à entoação, ao léxico, à gramática nos quais me doem as minhas dores, penso os meus pensamentos e, enfim, me consola este corolário. A língua não tem pele ou polícia fronteiriça. É um estalajadeiro afável. Acolhe-nos, estende-nos pão e água, aquece-nos com o seu corpo, sem olhar as escaras na nossa pele. Quando damos conta, estamos sozinhos nesse país onde a água para matar a sede se vende a troco de sangue. E nós julgando que o dono da estalagem era só um velho risonho e que o documento mais dolorido do mundo era o passaporte.
Gosto de imaginar que a literatura do passado falou sobre nós melhor do que seremos capazes de fazer, e não aceito que me digam que não estou moral, social ou racialmente apta a escrever sobre o que for — o que implica reconhecer o mesmo direito a todos os que escrevem, independentemente da sua cor de pele, posição social etc. O que é, afinal, uma pessoa parecida connosco? Alguém com quem consigamos conversar, estar em silêncio, um amigo que seja ele enquanto eu sou eu, uma companhia com tema livre.
Matéria publicada na edição impressa #88 dez em dezembro de 2024. Com o título “As margens da língua”
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