Coluna

Djaimilia Pereira de Almeida

Onde queremos viver

Arranjar flores às cegas

Pertencer é o que vem depois de agarrarmos a certeza de que não pertencemos a lado nenhum

01jul2024 - 10h45 • 01jul2024 - 11h58 | Edição #83
Detalhe de "Doze girassóis numa jarra, de Van Gogh", óleo sobre tela, 1888/Reprodução

Regresso a Portugal depois de quase um ano em Nova Iorque. No Alentejo, ou já não me conheço ou o mar é o mesmo e eu nunca o tinha visto. É como um baptismo de voo só que vou pela primeira vez com os pés assentes na terra.

Detalhe de Doze girassóis numa jarra, de Van Gogh, óleo sobre tela, 1888 (Reprodução)

Costumava passar aqui a infância, já não me lembro se fui feliz ou não. Mas sei que agora é que sou criança, vejo, sinto, ouço, estremeço pela primeira vez. Fui morrer à outra margem e acordei na praia.
Toda a literatura que conheço me cruza os ouvidos. Estou naquela encruzilhada de que falava a Beyoncé na canção ao som da qual escrevi o meu primeiro livro, só que apenas hoje a entendi.

Fui a Nova Iorque entender que não nos bastamos. Nunca se está só nem completamente acompanhado. Chamem-lhe Deus, o tempo, vento, música ou sentido. Fumo à janela e vejo-me ao volante de um carro pela estrada de Sintra, onde não vou desde há não sei quantas primaveras. O vento leva o fumo do cigarro a outras paragens, vai até a menina que fui e saltitava a ver as montras.

E eu que acreditava que os livros eram bicicletas e escrever, subir montanhas, quando tudo o que é preciso é voltar a pisar na areia, cair na tentação de atravessar o corredor sombrio, procurar se do outro lado está alguém a ser feliz.

Fui entender que não nos bastamos. Nunca se está só nem completamente acompanhado

Pertencer é o que vem depois de agarrarmos a certeza de que não pertencemos a ninguém nem a lado nenhum. Mas não é nada como eu pensava. É reconhecer que estamos enlaçados num arbusto podado por uma jardineira malvada como uma menina travessa, que era eu sem o saber.

Se a liberdade é o jardim de um cego, a casa é o lugar que se reconhece depois de o coração partir. E então aí é que se é finalmente jardineiro, alguém que morreu para contar o que viu e agora arranja as flores às cegas.

Há uma primeira vez para tudo, até para reparar que os girassóis, afinal de contas, são amarelos.

Quem escreveu esse texto

Djaimilia Pereira de Almeida

Escritora angolana, publicou Esse cabelo (LeYa).

Matéria publicada na edição impressa #83 em julho de 2024. Com o título “Arranjar flores às cegas”