Onde Queremos Viver,

Águas passadas

Devolvi uma série de livros que recebi usados à circulação aleatória. Há nesse fluxo uma beleza

27jul2023 | Edição #72

Nova mudança de casa. O preço do metro quadrado dita que meia biblioteca não vá. De mais a mais, é bom haver espaço para novidades. Viaja por isso o estritamente necessário. Fotolivros (todos); literatura e poesia em português (o máximo que passar na alfândega); gigantes e afectos; algumas edições nossas (para oferecer). Que fazer da filosofia? Sobre a mesa ampla disponho várias dezenas de livros. Organizo-os sem fanatismo alfabético, por afinidades minhas. É o mesmo tampo de pinho sobre o qual sequencio imagens: a base do tarot analítico que tortura os fotógrafos. Jogo outro jogo. Será?

Curioso retrato aquele que a mesa me devolve. Em pilhas, vou erguendo pequenas esculturas autobibliográficas. Lápides a interesses que morreram, de dimensões variáveis. Na universidade, estudei filosofia (entre outras coisas). Especializei-me na intersecção entre o pensamento ético de Aristóteles e o seu interesse por tragédias. Mais tarde, nutri-me das migalhas das migalhas de Wittgenstein. Hoje fotografo baldios e sou feliz. As pilhas de livros trazem à memória duas grandes lições dessa dura fase: (a) que fazer filosofia é, quase sem excepção, papaguear filosofia; (b) que papaguear filosofia não conta como filosofia. Vários anos penei sob este venenoso conflito. Perdi com isso a juventude, a alegria de escrever e o ânimo de publicar. Águas passadas.

Haver espaço para tudo era condição de sair do pântano da classe por via de uma educação

Devolvi entretanto uma série de livros que chegaram às minhas mãos já usados à circulação aleatória. Há nesse fluxo de segunda mão uma beleza específica. O modo como marginalia e sublinhados revelam a comunicabilidade do juízo: a existência de outros, sem marcação de género e identidade, espalhados por décadas e latitudes, outros que apesar da contingência se reconhecem nas minhas — nas nossas — mais solitárias dúvidas e impressões. Vejo um palimpsesto colectivo de anotações anónimas. Vejo que ninguém o conhece na totalidade. Talvez constitua o grande fóssil da cultura humana. Em face da internet, o último rizoma rival. Caindo em mim, vêm à memória tantos e tão vexantes sublinhados cuja razão de ser se torna opaca e ilegível, anos ou apenas semanas depois.

Reduzir o cânone ao inventário de carga. Não por ódio à tradição; não por nobres motivos. Antes, por falta de espaço. Vou separando livros. Que resta já? Analíticos (os poucos legíveis); continentais (os poucos que fazem sentido); heróis antigos, modernos, pós-modernos; comentadores obscuros (meia dúzia); santos, blasfemos; dois ou três canceláveis (com toda a probabilidade). Havia espaço para tudo na época em que os trouxe para casa. Haver espaço para tudo era condição de sair do pântano da classe por via de uma educação. Hoje é menos claro que houvesse autenticamente espaço para tudo. Hoje é menos claro também que se possa escapar do pântano da classe. Desler, não posso; bater-me, para quê? Talvez a filosofia não passe de um género literário, com seus próprios tropos e manias. Talvez como a tragédia grega ou a “Verdade”, o que li, o que sou, tenha tido a sua época. O futuro é o metro quadrado ser mais caro. Melhor assim.

Quem escreveu esse texto

Humberto Brito

É escritor, ensaísta e fotógrafo

Matéria publicada na edição impressa #72 em agosto de 2023.