Coluna

Kalaf Epalanga

Um benguelense em Berlin

A despedida

Lembranças de um rapper preto sentado junto a um tabuleiro de xadrez em frente ao mar de Portugal

27fev2020 | Edição #31 mar.2020

Nosso encontro estava marcado no calçadão da Costa da Caparica, junto ao concorrido Café do Mar, ponto de encontro de surfistas e caçadores de ondas de toda espécie, vindos dos quatro cantos da grande Lisboa. Pontual como sempre, cheguei mais cedo e me coloquei de costas voltadas para o mar à espera de que ele aparecesse. Não demorou. Roupas largas, Nike imaculadamente brancos nos pés, dreadlocks caídos até o meio das costas, qual rapper orgulhoso por se identificar e o reconhecerem como tal. Vi-o ao longe, a atravessar sem pressa o estacionamento em frente àquele que já foi o Bairro da Mata, um ajuntamento de casas de construção improvisada e algumas barracas precárias que mal resistiam às rajadas de vento que assolavam a Costa quando o inverno se apresentava mais rigoroso.

Os antigos moradores do bairro, apesar de terem sido despejados e realojados em paralelepípedos de betão a mais de 40 quilómetros de distância, reconheciam, encolhendo os ombros, que a Costa da Caparica estava melhor comparativamente à época em que ali viviam. “Está um bonito grão de Miami” — confessam-me, quando cruzo com alguns rostos familiares. Curiosamente, ainda lhes identifico no passo demorado todo um gingado sincopado, inclinado ligeiramente para estibordo, de quem já viveu juntinho ao mar. Pergunto-me se também reconhecem em mim o mesmo gingado, já que tive a Praia Morena como uma extensão do pátio da escola e passei praticamente toda a infância com os tornozelos enfiados no mar de Ombaka.

Foi com essa ginga que ele subiu ao calçadão, dirigindo-se a mim e levando um tabuleiro de xadrez debaixo do braço, sua rotina de domingo desde que chegamos de Benguela e que manteve, mesmo vivendo fora da Costa da Caparica. Se não o conhecesse, diria que aquele volume continha cartas marítimas, porque olhava para o Atlântico com a serenidade de um navegador, o respeito de um adversário e a cumplicidade de um amante; diria até que tinha o olhar dos velhos pescadores de Baía Farta, quando se quedavam junto à água e às nuvens auscultando o vento, antes de zarparem para dentro do azul cobalto do golfo de Benguela. Não obstante, nunca o vi mergulhar no mar da Caparica. Diria até que nunca aprendeu a nadar.

Nossa república

A última vez que o vi na água foi no tanque reservatório que tínhamos no quintal para cobrir as falhas de abastecimento quando havia sabotagens na barragem do Biópio, no tempo da guerra civil. Encontrávamo-nos todos os dias no muro do quintal de minha casa, na esquina entre a rua Pedro Nolasco Pereira de Andrade e a avenida Aires de Almeida Santos, eu e o kota que escreveu “Meu amor da rua Onze”, o primeiro poema que memorizei na ponta da língua. Chamávamos o cruzamento de “nossa esquina” e a razão pela qual a declaramos “nossa república” prendia-se com o facto de, durante todo o dia, cair ali a sombra de uma acácia majestosa, transformando-o no mais fresco da rua e o único onde, sem muito esforço, se podia cheirar ou sonhar-cheirar as ondas da Praia Morena.

Ele acenou com a cabeça, sentou-se a meu lado e abriu nosso tabuleiro de xadrez, que viajou connosco desde Benguela. Começou a arrumar as peças, primeiro as brancas e, antes de passar às pretas, disse-lhe: “Esta noite regresso a Angola”. Ele olhou para mim e para a mala que tinha entre as pernas, deve se ter perguntado por que não o avisei e, quando começou a enfileirar os peões pretos, quebrou o silêncio com a questão que sabia que lhe era mais importante: “Onde arranjaste o dinheiro?”. Respondi-lhe que me havia sido emprestado quando, na verdade, roubei-o, aproveitei um momento de distração do tio Sikas, meu vizinho. Ele sabia que era mentira.

O Sikas era gajo fixe, não era parente de ninguém que eu conhecesse, mas todos lá no bairro o tratavam por “tio” porque quando pegava empreitadas grandes dava-nos o toque para fazer uns biscates de pintura. Sempre que essas fezadas me surgissem, chamava meu irmão de esquina para fazer um dinheiro rápido, até que as rimas passassem a dar lucro. Desde que começou a levar a coisa de cantar mais a sério, já lá vai uma década, nunca teve grandes quantias a circularem nos bolsos fundos de suas baggy jeans. E não por falta de talento — música não dá dinheiro, foi ele próprio que me revelou, por isso para segurar as pontas não se importava de, em troca de uma percentagem, me ajudar a vender no calçadão uns sabonetes de chamon marroquino.

O episódio do tanque de água é-me ainda muito presente porque no cacimbo anterior àquela data não arredamos pé da nossa esquina, disputando ali mesmo intensos campeonatos de futebol de caricas, impulsionados pela vitória da Argentina de Maradona no Mundial de 1986. Não sei de quem terá sido a ideia, mas a falta de interesse para o caricas e as bolas de gude naquele ano fez com que rumássemos às instalações desportivas do 1º de Maio com a intenção de nos inscrevermos no voleibol, no futebol de salão, no karaté ou, na última hipótese, na ginástica, frequentada pelas melhores mboas da cidade. Sei que passamos aquela tarde a assistir a uma aula de cada modalidade, mas nenhuma nos convenceu; eram demasiado organizadas para nosso gosto. Divertíamo-nos mais com nossas peladas de bola de saco na rua ou a fazer corridas de pneu em volta do quarteirão, ou a jogar basquetebol em tabelas improvisadas quando um dos vizinhos com parentes em Portugal aparecia na zona com uma Spalding novinha, até ser roubada e voltarmos às bolas de saco.

Decepcionados por não encontrar nenhuma actividade desportiva excitante, decidimos voltar à nossa esquina a fim de não perder as quitandeiras que, no fim da tarde, vindas da estação de comboios, passariam por nós carregadas de cana de açúcar. Porém, já na saída, avistamos uma sala que, quase vazia e à meia-luz, exibia em suas mesas enfileiradas dezenas de tabuleiros. A solenidade do conjunto aguçou nossa curiosidade: que jogo era aquele, cujo tabuleiro lembrava o que era usado no jogo de damas, mas cuja forma e ordem das peças eram diferentes? O instrutor convidou-nos a entrar e aprender as regras. Ao fim de algumas horas, e com a promessa de que regressaríamos, foi-nos autorizado levar um tabuleiro. Não demorou para que na nossa esquina se travassem torneios com a intensidade de um Karpov vs Kasparov, com direito a claque e apostas, contagiando quase todos os que passavam pela nossa esquina.

As pessoas que passavam intrigadas com aquele quadro (um rapper, preto, sentado junto a um tabuleiro de xadrez aberto, numa praia) perguntavam se sabia jogar, ao que respondia sempre afirmativamente, com um sorriso. Esse gesto fazia com que o transeunte se sentisse convidado e o desafiasse para uma partida. Passei longas tardes naquele calçadão a vê-lo jogar, como se nele tivesse baixado o espírito do mestre cubano José Raúl Capablanca, com algumas dezenas de turistas que passaram pela vila durante aquele mês de agosto. Ninguém o conseguia bater; tal como eu, todos perderam repetidamente e de forma um tanto ou quanto humilhante. Ele não gostava de praia, mas estar de frente ao mar era o mais próximo que poderíamos estar de Benguela, e o lucro que fazíamos com chamon servia basicamente para refeições, transporte e vestimenta. Nenhum de nós tinha a disciplina para movimentar droga suficiente para pagar nosso regresso para Angola.

Quem escreveu esse texto

Kalaf Epalanga

Escreveu Também os brancos sabem dançar (Todavia).

Matéria publicada na edição impressa #31 mar.2020 em fevereiro de 2020.