Coluna

Bianca Tavolari

As cidades e as coisas

Fábrica em transe

Das primeiras manufaturas têxteis ao Vale do Silício, dois livros para entender o passado e o futuro da indústria e do trabalho

01maio2019 | Edição #22 mai.2019

Em meados da década de 1970, o sociólogo americano Daniel Bell caracterizou as profundas transformações sociais, políticas e econômicas de sua época como o início de uma sociedade pós-industrial. Se a era industrial havia sido marcada pela produção em massa, ditada pelo ritmo da máquina e pela pretensão de dominação completa da natureza, as mudanças estruturais mundo afora apontariam para uma tendência de desaparecimento da fábrica como instância-chave de estruturação social e para o eclipse do trabalho fabril pouco qualificado como horizonte mais imediato. 

Mas não era apenas um tipo específico de organização do trabalho e das habilidades profissionais que dava sinais de crise: era todo o quadro de referências de uma época que apresentava indícios de ruína. Tanto a subjetividade como a crítica de Tempos modernos de Chaplin pareciam não encontrar mais lugar. No argumento de Bell, os serviços altamente especializados e uma economia vinculada à informação abririam caminho para uma sociedade fundada em novas bases.

Mastodontes — A história da fábrica e a construção do mundo moderno, do historiador americano Joshua B. Freeman, é um ataque frontal a essa ideia. Uma das razões para a crítica é bastante simples: quando a maioria de nós olha ao redor, vê uma quantidade nada trivial de objetos produzidos por fábricas. Do mobiliário à lâmpada, do smartphone ao notebook, tudo foi fabricado. “A fábrica ainda define o nosso mundo”, afirma Freeman. Mas, curiosamente, apesar de estarmos no “apogeu da fabricação”, naturalizamos a existência dessas mercadorias a ponto de não percebermos nosso grau de dependência desses produtos.

O objetivo de Freeman é, portanto, trazer a fábrica de volta para o centro do quadro de análise — ou melhor: dar a ela seu devido lugar na sociedade contemporânea. Para isso, ele desenvolve uma história das fábricas: começa pelas primeiras manufaturas têxteis inglesas do final do século 18 até meados do 19; passa pela indústria têxtil dos Estados Unidos, também em meados do 19, e pelas siderúrgicas e fábricas de automóveis americanas, já entrando no século 20; pelas grandes fábricas na experiência do socialismo real e depois no contexto da Guerra Fria; e chega, por fim, às novas fábricas chinesas e vietnamitas.

Freeman não pretende fazer uma história de qualquer fábrica, mas apenas daquelas que se tornaram gigantes para sua época. Não são apenas simples unidades de produção. A escala as transforma em monumentos que provocam assombro e maravilhamento. São tão grandes que se tornam cidades. O gigantismo faz com que sejam compreendidas como a própria encarnação da modernidade: ao mesmo tempo que são símbolos do progresso e de dias melhores, corporificam a miséria do sofrimento humano, combinando luzes e sombras num só lugar. São, portanto, os mastodontes que dão título ao livro. 

Shenzhen

O original em inglês confere ainda mais camadas de sentido: Behemoth não é apenas uma criatura enorme e extinta, assemelhada a um elefante ou a um hipopótamo. É também um monstro bíblico que serviu de referência a diversas metáforas da história das ideias políticas. E dá título ao livro de Thomas Hobbes que se opõe ao Leviatã, representando um mundo em que imperam todos os abusos. 

A imagem foi retomada por Carl Schmitt, já no nazismo, para caracterizar o Leviatã como o Estado soberano e o Behemoth como seu inimigo, a revolução. Em oposição diametral a Schmitt, Behemoth também dá título ao livro de Franz Neumann de 1942 sobre o nacional-socialismo, mas para caracterizá-lo como um não-Estado monstruoso. Entender as grandes fábricas nessa chave é acrescentar mais um estrato de significados: são elas que passam a ser vistas como o colosso brutal que, ao mesmo tempo, consolida e desestabiliza a ordem.

Em Mastodontes, as grandes fábricas são analisadas a partir de um ponto de vista complexo e multifacetado. Joshua Freeman combina elementos decisivos que conformam a organização do trabalho dentro das estruturas fabris, aos aspectos técnicos que servem de condicionante para o desenvolvimento da indústria, mas também detalha a arquitetura dos prédios e como esses monstros que despertavam medo e adoração eram retratados na literatura, na pintura, no cinema e nas artes em geral. 

Além disso, as fábricas também são analisadas como arenas de contestação e protesto. Desde a Derby Silk Mill, a primeira grande fábrica têxtil inglesa, até os dias de hoje, elas são campos de disputa por direitos:  tanto por direitos trabalhistas individuais e coletivos, quanto por direitos políticos de liberdade de expressão e reunião — além da reivindicação por autodeterminação coletiva e por participação ativa nos processos decisórios. São, historicamente, instâncias em que a negação de direitos básicos deu lugar a movimentos de contestação bastante significativos, com efeitos para além dos muros da fábrica.

Muitos só passaram a conhecer a maior fabricante de iPhones do mundo em 2010, quando catorze trabalhadores chineses se mataram

A posição de Freeman só é possível na medida em que ele adota uma perspectiva global. Se Daniel Bell viu o início do declínio dos empregos industriais nos Estados Unidos da década de 1970, não é verdade que a mesma tendência tenha se confirmado em todos os lugares do mundo. Uma das teses de Freeman é enunciada logo no início do livro: “O que manteve vivo o modelo do gigantismo industrial não foi sua sustentabilidade em qualquer local, mas seu ressurgimento em novos lugares, com novas forças de trabalho, novos recursos naturais e condições de atraso a ser exploradas”. Daí o contraste: enquanto nos Estados Unidos as fábricas ganham as manchetes dos jornais por estarem fechando, deixando milhares de desempregados e as ruínas de cidades inteiras para trás (como Detroit), a China e o sudeste asiático se tornaram os centros da fabricação da maior parte dos produtos utilizados pelo resto do mundo.

Mas a principal tese é menos explícita e vem apenas ao final do livro. Os mastodontes da China e do Vietnã teriam muitos pontos de contato com as primeiras fábricas descritas no livro. Assim como na Inglaterra de meados do século 19, a maioria dos trabalhadores das plantas da Foxconn e da Yue Yuan, apenas para ficar em alguns dos principais exemplos, são migrantes e foram recrutados no mercado de trabalho rural. 

A maioria deles não tem direitos trabalhistas consolidados, mas vive a liberdade de um salário alto em comparação com os rendimentos possíveis na aldeia. Assim como nos séculos 18 e 19, as fábricas também fornecem alojamento e a infraestrutura de uma cidade como forma de reter trabalhadores e pagar salários mais baixos. A organização do trabalho também é muito parecida: as tarefas são em grande medida individuais, cada um executa ações idênticas às dos demais, sem maiores interações entre empregados. E a miséria social também é muito parecida com  aquela das origens da fábrica. A pauta da limitação das horas da jornada de trabalho passou a ser discutida na China diante da exaustão crônica de milhares de trabalhadores.

Mas não é como se a história funcionasse como um pêndulo que simplesmente volta para o mesmo lugar. Para Freeman, há uma diferença central: se antes as fábricas eram celebradas publicamente, os mastodontes de hoje estão fora dos holofotes. Muitos de nós só passamos a saber da existência da Foxconn, maior fabricante de iPhones do mundo, quando mais de uma dezena de funcionários tirou a própria vida em 2010, ao se jogar dos telhados da maior planta da empresa em Shenzhen.

Freeman afirma que nosso mundo ainda é definido pelas fábricas, mas não aponta para o que pode estar no horizonte. Se ainda é muito cedo para declarar que os mastodontes monstruosos acabaram como instituição global, o livro poderia ir além e indicar tendências inscritas em transformações recentes. 

Como a industrialização se relaciona com a financeirização? Como pensar o futuro do trabalho dentro desse quadro de referências? Como pensar os novos tipos de precarização vinculados em grande medida ao desenvolvimento tecnológico? 

Freeman não responde a essas perguntas. E, sem endereçá-las, também deixa de discutir se estamos simplesmente voltando a um estado de barbárie ou se a ambiguidade da modernidade ainda permanece não resolvida.

Do McDonald’s a Wall Street

Os robôs e o futuro do emprego, de Martin Ford, traz essas questões para o primeiro plano da análise. Publicado em 2015 e traduzido agora para o português, o livro é um best-seller aclamado por grandes referências do mundo dos negócios, como a Forbes e o Financial Times. Ford é um empresário do Vale do Silício, especialista em desenvolvimento de softwares e em inteligência artificial. Traz, portanto, uma perspectiva interna sobre as principais transformações da tecnologia em sua relação com o trabalho, numa linguagem simplificada.

Não seria exagero dizer que, para Ford, as grandes fábricas também podem ser vistas como mastodontes. Mas em sentido diferente daquele atribuído por Freeman: poderiam ser comparadas aos mamutes pré-históricos justamente por estarem em extinção. Não que Ford ignore a importância das unidades fabris para o mundo em que vivemos. Mas elas certamente não estão no centro das tendências que ele desenha para o futuro: o desenvolvimento tecnológico é o fio condutor da análise.

O livro se organiza em torno de duas teses bastante fortes. Na primeira delas, Ford afirma que o desenvolvimento acelerado da tecnologia não vai apenas acabar com empregos de baixa qualificação, baseados em tarefas repetitivas, previsíveis e pouco complexas. Os robôs também vão tomar empregos qualificados, que exigem pensamento analítico e crítico, aprendizado e percepção fina. A eliminação dos trabalhos rotineiros é apenas um pequeno sinal na superfície. 

Máquinas substituem jovens advogados na leitura de milhares de páginas de processos e algoritmos sofisticados investem nas bolsas 

Estamos vendo as máquinas destruírem postos de trabalho em redes de fast-food, diminuir o uso intensivo de mão de obra em depósitos de grandes varejistas, tornar dispensável a função do cobrador de ônibus e mesmo substituir o trabalho de jovens advogados na leitura de milhares de páginas de processos judiciais. 

Mas o ponto de Ford é mostrar que computadores e algoritmos avançados já conseguem, muitas vezes com graus de precisão e eficiência mais elevados, fazer investimentos em Wall Street, identificar e comparar sintomas em exames de radiologia, traduzir textos para centenas de idiomas, entre tantas outras atividades mais intricadas que pareciam estar reservadas apenas aos humanos. Isso significa que, com o tempo, a vasta maioria dos empregos existentes será facilmente passível de substituição.

 Qualificar os trabalhadores para desempenhar funções mais complexas costuma ser a resposta mais comum a essas transformações. E esta é a segunda tese do livro: mais instrução e formação não significam, no longo prazo, maior garantia de proteção ao emprego. Para Ford, costumamos ver o mundo do trabalho como uma escada de vários degraus, em que diplomas universitários são requisitos para subir de nível e alcançar ocupações mais especializadas. 

O problema está justamente na imagem: os degraus ascendentes das qualificações não seriam de fato platôs sem limite de entrada, mas uma pirâmide com pouquíssimo espaço no topo. Um indício disso são os milhares de jovens diplomados e qualificados demais para grande parte dos empregos oferecidos hoje.

Vingança ludista

Haveria um motivo muito simples para não nos alarmarmos com estas duas tendências: estamos discutindo o impacto das máquinas na organização do trabalho ao menos desde os ludistas, no começo do século 19. Até agora, os cenários sombrios de eclipse do emprego não se confirmaram: as máquinas aumentaram a produtividade dos trabalhadores em vez de ocuparem seus lugares para valer. Além disso, em todos os processos tecnológicos disruptivos, a destruição também é criadora de novas indústrias e postos de trabalho mais qualificados. 

Para Ford, o alarme falso de outrora tem de ser levado muito a sério agora. Estaríamos vivendo hoje uma espécie de vingança dos ludistas: as novas máquinas estariam de fato substituindo o emprego, e a destruição não estaria sendo acompanhada pela criação de vagas melhores. Hoje, trabalhar com a máquina nada mais é do que treinar um software para substituir o homem mais adiante.

E isso também tem consequências para o que entendemos por sociedade de consumo. Se todo trabalhador é um consumidor, a diminuição significativa de postos de trabalho reestrutura todo o mercado, pois não haverá mais demanda para comprar os milhares de mercadorias produzidas. A renda tende a se concentrar ainda mais.

Ainda que Ford não pretenda discutir os dilemas da modernidade, a questão vem à tona na medida em que o desenvolvimento tecnológico de hoje é visto como algo sem precedentes, que impediria qualquer aprendizado com o passado. Isso não quer dizer que ele não veja possíveis saídas: o autor faz coro à proposta de renda básica universal para tentar dar conta do aumento crescente da desigualdade social, antecipando um mundo em que ter emprego será um privilégio de poucos.

Enquanto Joshua Freeman olha para o passado para entender a permanência das grandes fábricas, Martin Ford já vê sinais de uma distopia em que as fábricas poderão até ser gigantes, mas não empregarão mais milhares de pessoas em suas plantas. São caminhos e fios condutores analíticos diametralmente opostos. Mas talvez sejam ambos necessários para entender as desigualdades fundamentais do mundo em que vivemos hoje.  

Quem escreveu esse texto

Bianca Tavolari

É professora da Fundação Getúlio Vargas e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Matéria publicada na edição impressa #22 mai.2019 em abril de 2019.