Economia,

De centavo em centavo

Vencedores do Nobel evitam conclusões abrangentes e defendem pequenos passos baseados em pesquisas para combater a pobreza

01dez2021 | Edição #52

Livros de Grandes Ideias são facilmente reconhecíveis, a começar pelos títulos dramáticos e pela ubiquidade em livrarias de aeroportos. A fórmula é consagrada: jornalistas ou, de preferência, pesquisadores estrelados costuram um best of de estudos acadêmicos com anedotas e personagens pitorescos, embalando tudo em alguma Grande Ideia extravagante demais para qualquer artigo científico. Algumas centenas de páginas depois, quando dá tudo certo, todos saem ganhando: os autores divulgam seus trabalhos e, de quebra, podem converter o prestígio universitário em influência política, palestras remuneradas, consultorias e financiamentos; o público, por sua vez, tem a chance de conhecer a vanguarda da produção acadêmica sem precisar se submeter à aridez de tabelas, equações e letras gregas.

A economia dos pobres, dos economistas Abhijit Banerjee e Esther Duflo, é um Livro de Grandes Ideias com credenciais impecáveis. Os autores já ostentavam uma coleção invejável de publicações e honrarias em 2011, quando a obra foi lançada em inglês, e de lá para cá seu prestígio só aumentou, culminando com o Nobel de Economia que os dois dividiram com Michael Kremer em 2019 — prêmio concedido em reconhecimento à sua “abordagem experimental para aliviar a pobreza global”. O roteiro do livro também não foge ao padrão: ao longo de dez capítulos, Banerjee e Duflo compartilham a bagagem acumulada por dezenas de estudos experimentais, ou quase experimentais, que avaliaram intervenções para melhorar a vida dos mais pobres entre os pobres do mundo. A prosa é límpida, sem tecnicismos nem virtuosismos, e — como não podia deixar de ser — recheada de causos cuidadosamente inseridos para dar colorido humano à narrativa.

Mas qual é a narrativa? É aqui que os autores introduzem uma variação na fórmula clássica. Se Seinfeld se orgulhava de ser um programa sobre o nada, A economia dos pobres vai além: é um Livro de Grandes Ideias sem uma Grande Ideia e que milita apaixonadamente contra as Grandes Ideias, ao menos no que se refere à economia do desenvolvimento. Na contramão das teses mirabolantes típicas do formato, eles nos dizem para “pensar pequeno”, defendendo enfaticamente que debater grandes questões abstratas é perda de tempo no combate à pobreza global. O mundo é complicado demais, nós não sabemos o que funciona e o que não funciona e, vistos à distância, os problemas sociais são demasiado intimidadores e paralisantes. A solução, escrevem os autores, é misturar humildade com pragmatismo e quebrar as grandes questões em pequenos desafios concretos que podem ser estudados com rigor e superados, contribuindo assim para a melhoria incremental das condições de vida dos mais pobres.

Os autores se contrapõem ao alto modernismo dos grandes projetos impostos de cima para baixo

Como melhorar a nutrição de crianças pobres? Como estimular as famílias a tomar medidas preventivas contra a malária ou para evitar a diarreia em crianças? Como desenhar seguros adequados às necessidades de pequenos produtores rurais? Essas e outras questões permeiam A economia dos pobres e, para resolvê-las, Banerjee e Duflo defendem o uso de experimentos randomizados controlados. Nesses experimentos, grosso modo, os pesquisadores dividem as famílias ou comunidades em grupos definidos de modo aleatório — o grupo de “tratamento”, que receberá a intervenção ou o programa, e o grupo de “controle”, que não será afetado. Se tudo for seguido à risca, a randomização ou aleatorização implica que as diferenças posteriores entre os grupos podem ser atribuídas ao tratamento. Com isso, podemos estabelecer relações causais com mais segurança, aprender o que de fato funciona ou não e, aos poucos, “fazer um progresso muito significativo contra o maior problema do mundo a partir do acúmulo de um conjunto de pequenos passos, cada um bem planejado, cuidadosamente testado e judiciosamente implementado”.

A proposta soa como música a nossos ouvidos desiludidos e pós-ideológicos, porém (ainda?) não indiferentes. Banerjee e Duflo se contrapõem firmemente ao alto modernismo dos grandes projetos impostos de cima para baixo que, não obstante alguns sucessos, nos legou mundo afora muitas ruínas, incontáveis violações de direitos humanos e dívidas monumentais. É difícil não concordar quando lembramos que os “50 anos em 5” nos prometeram a utopia e nos entregaram… Brasília. Ao mesmo tempo, os autores também se afastam da retórica cinicamente intransigente que repete a mesma sugestão para todos os problemas — a de que não há nada a fazer além de reforçar as instituições de mercado, já que boas ações sempre redundam em resultados perversos, fúteis ou contraproducentes, como na famosa tipologia de Albert Hirschman. Isentonamente longe desses extremos, A economia dos pobres preconiza um populismo tecnocrático que respeite a racionalidade e os desejos dos pobres operando um paternalismo incrementalista, comedido e eficiente. Políticas públicas baseadas em evidências — como diz o mantra do nosso tempo — que mirem sobretudo intervenções capazes de desatar armadilhas da pobreza e gerar elevado retorno social.

Os autores entendem do riscado, e o livro brilha quando ultrapassa a mera descrição de experimentos para mergulhar na lógica que rege as decisões dos mais pobres sem deixar de apontar as enormes restrições e constrangimentos que a pobreza impõe. Esses momentos atenuam a abstração excessiva da pobreza que sobressai em outros trechos do livro, nos quais temos a impressão de que os pobres são mais ou menos iguais em todos os cantos, definidos pela falta de recursos econômicos e ponto-final, sem história nem História — como se as semelhanças entre um camponês no Benin e um catador de lixo em uma metrópole indiana fossem absolutamente autoevidentes. Seja como for, na saúde, na educação ou em outras áreas, nem sempre os problemas se resumem à falta de acesso pura e simples, e um tema recorrente é como os pobres são obrigados a ter responsabilidade excessiva sobre sua própria vida, enquanto as classes médias são continuamente amparadas pelo paternalismo suave de políticas e instituições que nos garantem desde água tratada até benefícios previdenciários no futuro. A segunda parte do livro, em particular, é bastante eficaz ao mostrar como os mais pobres estão expostos o tempo todo a riscos avassaladores, contando apenas com instrumentos precários e ineficientes para protegê-los. Os autores são didáticos ao apresentar os pobres como “empreendedores relutantes”, desconstruindo a fetichização do empreendedorismo tão em voga em certos círculos, e sóbrios e persuasivos ao analisar os limites de programas de microcrédito no enfrentamento da pobreza.

Lições modestas

Banerjee e Duflo esforçam-se para evitar o tom professoral, a ponto de concluir o livro mui humildemente com cinco modestas lições — por exemplo, “os pobres carecem geralmente de informações críticas e acreditam em coisas que não são verdadeiras” —, em vez de conclusões taxativas e abrangentes.

Assim como um bom experimento randomizado controlado, A economia dos pobres seduz por sua consistência interna, empacotando todo um projeto intelectual que prima por sua conveniência. Como observaram os sociólogos Luciana de Souza Leão e Gil Eyal, há uma inegável harmonia entre o uso de métodos experimentais, o foco em intervenções pontuais e de curto prazo, a procura ininterrupta por altos retornos sociais e o éthos das fundações privadas e filantropo-capitalistas que financiam boa parte desses esforços.

Será o suficiente? Banerjee e Duflo são ótimos vendedores, mas, quando nos afastamos um pouco da prosa mansa do livro, as dúvidas aparecem. Como já escreveram Martin Ravallion, Angus Deaton e muitos outros, experimentos randomizados não são tão simples nem tão versáteis quanto os randomistas querem crer, e A economia dos pobres passa ao largo das críticas mais contundentes, inclusive quanto a questões éticas relativas à aplicação de experimentos em seres humanos. Mas nem precisamos entrar em discussões tão elevadas para questionar o salto de fé envolvido na generalização do “pensar pequeno”. Afinal, quão viável é apostar as fichas em combater a pobreza de centavo em centavo? Mesmo as intervenções mais bem-sucedidas em A economia dos pobres acabam, na prática, aumentando muito pouco a renda dos beneficiários em termos absolutos — não há escapatória para o fato de que o dobro de quase nada é muito pouco. Ao mesmo tempo, o livro não tem nada a dizer sobre o que talvez seja o maior processo de redução da pobreza da história: a saída de cerca de 800 milhões de chineses da pobreza extrema desde 1980.

Fala-se muito em aliviar a pobreza global e absolutamente nada sobre desigualdade

Não é preciso aplaudir a China para reconhecer que o silêncio é no mínimo estranho, o que remete a uma crítica comum aos randomistas mais radicais: a boa prática em ciências sociais recomenda que a escolha do método decorra do objeto de pesquisa e do seu contexto, e não o contrário, sob o preço de recairmos na máxima de “para quem só tem martelo, tudo parece um prego”. Concretamente, se experimentos randomizados controlados são a única ferramenta aceitável, então o risco é que apenas políticas imediatistas, de pequena escala e com resultados facilmente mensuráveis recebam atenção. No longo prazo, saberemos mais e mais sobre intervenções cada vez menos relevantes. Nesse sentido, A economia dos pobres deveria vir com um alerta visual, como as embalagens de cigarro, para que jovens cientistas sociais não caiam em tentação, já que tanto Abhijit Banerjee quanto Esther Duflo são inteligentes e experientes demais para isso em suas carreiras acadêmicas e o próprio livro, meio na surdina, recorre a evidências obtidas por outros métodos.

As paixões e os interesses

Há pouco conflito de interesses em A economia dos pobres — o livro tem muito a dizer sobre políticas, no plural, mas nem tanto sobre a política. Não à toa, fala-se muito em aliviar a pobreza global e absolutamente nada sobre desigualdade, apesar da referência no subtítulo em português. No último capítulo, quando Banerjee e Duflo finalmente enfrentam grandes questões institucionais, a excelente revisão bibliográfica desemboca em uma saída tipicamente incrementalista, confiando no acúmulo de mudanças graduais, porém sustentáveis, que “podem ser o início de uma revolução silenciosa”. Ou, como escrevem na conclusão, “[a] boa notícia, se essa for a expressão correta, é que é possível melhorar a governança e as políticas públicas sem alterar as estruturas sociais e políticas existentes”.

Será mesmo? No mínimo, é razoável responder que simplesmente não sabemos se esse é o caso. O exemplo mexicano serve de lição: um dos heróis de A economia dos pobres é Santiago Levy, vice-ministro de Finanças de 1994 a 2000, considerado o pai do Progresa, uma espécie de Bolsa Família do México. Banerjee e Duflo cobrem Santiago Levy de elogios por ter criado em 1997 o primeiro programa do mundo de transferência de renda com condicionalidades e aproveitam para vender seu peixe: na versão deles, Levy teve a sacada genial de antever que seria difícil governos posteriores se livrarem do programa se ele fosse um grande sucesso e, para isso, patrocinou um projeto-piloto que foi muito bem avaliado com os métodos experimentais defendidos pelos autores. “Foi também uma das primeiras demonstrações do poder persuasivo de um experimento randomizado bem-sucedido”, escrevem Banerjee e Duflo, assinalando que o programa perdurou, sofrendo apenas uma mudança cosmética, a troca de nome para Oportunidades, em 2002.

Imprecisões factuais à parte — o Progresa não foi o primeiro programa do tipo no mundo —, o diagnóstico dos autores envelheceu mal. Depois de outra mudança de nome, dessa vez para Prospera em 2014, o programa foi extinto de forma peremptória e sem grande bafafá na atabalhoada reforma da política social promovida pelo presidente Andrés Manuel López Obrador (amlo) em 2019. O novo paradigma alardeado pelo governo amlo piorou a frágil proteção social mexicana, concentrando mais recursos em pensões não contributivas para idosos. Os benefícios do Prospera vinculados à educação foram os únicos que sobreviveram em algum grau, transmutando-se em programas do tipo Bolsa Escola com valores mais baixos do que antes. Uma lufada de voluntarismo populista derrubou toda a resiliência atribuída a políticas baseadas em evidências.

Não se trata de um caso único. Na América Latina de 2021 é difícil conjurar ânimo com o incrementalismo ou apostar alto em “pensar pequeno”. Não precisamos nem relembrar os desmandos brasileiros dos últimos dez anos, bastando citar, por exemplo, o turbilhão de insatisfações que chacoalhou o sistema político chileno — justo o Chile, país que simbolizava em múltiplas dimensões o sucesso do gradualismo tecnocrático. Um cínico diria que reduzir a política social a um conjunto de lifehacks tem mais apelo para financiadores e pesquisadores do que para eleitores, que andam com enorme apetite por expor seus antagonismos.

É nesse ponto, talvez, que podemos voltar a Banerjee e Duflo com olhar mais generoso. Os autores propõem uma visão comportadinha de desenvolvimento, sem muito glamour, que deixa as desigualdades políticas e econômicas em segundo plano; é muito pouco para inspirar paixões, mas, como nos ensina o cancioneiro popular, paixões também podem ser destrutivas. Em outras palavras, talvez o maior apelo de “pensar pequeno” seja limitar os prejuízos das políticas que dão errado. Decerto isso não escapou aos autores, que nutrem evidente empatia pelas famílias e comunidades que estudam. À distância, é moleza criticar a despolitização inevitável que acompanha a cruzada de Banerjee e Duflo contra os “três Is” que afligem as políticas públicas — ideologia, ignorância e inércia. No entanto, um ensinamento dos nossos tempos pandêmicos é que a politização ostensiva e excessiva é absolutamente arriscada e desgastante. E, política à parte, é evidente que, tudo o mais constante (sempre palavrinhas mágicas), é melhor viver em um mundo em que as políticas são avaliadas e aprimoradas.

É compreensível que Banerjee e Duflo tenham cedido às hipérboles para dar aquele lustre a mais no seu projeto intelectual

No fim das contas, “vamos com calma para evitar grandes burradas” não é um slogan sedutor o suficiente para animar um Livro de Grandes Ideias que ambiciona ir além da necrologia das boas intenções. É compreensível que Banerjee e Duflo tenham cedido às hipérboles e elipses necessárias para dar aquele lustre a mais no seu projeto intelectual. Faz parte do pacto dos Livros de Grandes Ideias com seus leitores: lemos (ou deveríamos ler) já sabendo que o exagero é o preço que pagamos pela conveniência e que nenhuma Grande Ideia dá conta de tudo que pretende explicar, embora seja útil para capturar nossa atenção em meio a uma torrente de opções literárias e audiovisuais. Analogamente, faz parte do pacto das resenhas dos bons Livros de Grandes Ideias começar pela descrição do conteúdo e depois emendar críticas mais ou menos ferozes, em um morde e assopra que invariavelmente termina naquela condescendência sabichona que recomenda o livro de bom grado apesar de suas lacunas e excessos.

Quem escreveu esse texto

Pedro H. G. Ferreira de Souza

É pesquisador do Ipea e autor de Uma história de desigualdade: a concentração de renda entre os ricos no Brasil (1926-2013), pela editora Hucitec.

Matéria publicada na edição impressa #52 em outubro de 2021.