Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

Um ano com Patti

Em ‘Um livro dos dias’, a autora de ‘Só garotos’ associa imagens e breves comentários abrindo novas possibilidades para exercitar memória, reflexão e criação literária

17fev2023 | Edição #67

O grande problema de autores que giram em torno do próprio umbigo é o interesse que o dito umbigo possa despertar. Nas viagens em torno de si mesma que Patti Smith vem conduzindo em livros tão diferentes quanto Só garotos ou O ano do macaco, a marca mais forte é, para começo de conversa, a excepcionalidade de sua personalidade artística. No primeiro deles, autobiografia bem comportada que levou o National Book Award de 2010, a narrativa de sua formação é inseparável da história de uma geração de artistas notáveis em que despontaram, dentre outros, Robert Mapplethorpe e Sam Shepard. No segundo, o ano de 2016 (sagrado ao macaco na tradição chinesa) é fio condutor de uma prosa indefinível entre registro da memória, digressão ensaística e a mão livre da fabulação literária.

A escrita de Patti Smith está longe de ser subsidiária da música, não sendo preciso ser fã de carteirinha para se tornar seu leitor — caso, aliás, deste que vos digita. Nem é mesmo necessário compartilhar suas muitas referências literárias, declinadas copiosamente em tudo o que escreve. O maior trunfo da Patti Smith escritora é fazer de seu leitor menos o espectador de um ego desmedido do que um cúmplice na celebração de seu universo particular, da banalidade do café da esquina à vida com Cairo, a gata. O que corre no fundo de sua escrita é um delicado elogio da literatura e da arte em geral como fundamento primeiro de uma visão de mundo.

Editado com o esmero das publicações de arte, Um livro dos dias parte de uma ideia simples: para cada dia do ano, uma imagem e um comentário breve. O formato é familiar aos mais de um milhão de seguidores de This is Patti Smith, perfil que desde 2018 instila no Instagram uma inteligência estranha aos padrões da plataforma. A edição remete ainda às polaroids com que ela intensificou sua presença no mundo arte — que começou a frequentar desde o final da década de 70 com uma exposição de seus primeiros desenhos. Mais do que comentário visual aos textos dos livros recentes, abre-se aí mais uma possibilidade de expressão de uma artista inquieta e cada vez menos definível.

Atlas afetivo

Um livro dos dias é também uma espécie de atlas afetivo, artístico e intelectual em que os principais pontos cardeais são Nova York, seu lugar no mundo, e Paris, uma pátria inventada do espírito. A cidade onde mora até hoje foi o primeiro pouso intelectual, a cena privilegiada dos anos de descobertas, vínculos e influências diretas: a vida no Chelsea Hotel, a amizade e admiração por William Burroughs, o lançamento de Horses, o álbum que a apresentou ao mundo em 1975. A capital francesa, que ela cultua em frequentes viagens e que a acolheria como artista visual nos anos 2000, também tem alta voltagem simbólica, uma espécie de síntese da cultura europeia de que Patti é tributária, a começar pela obsessão por Rimbaud e Virginia Woolf.


Registros de Patti Smith publicados no perfil This is Patti Smith e no Um livro dos dias [Divulgação]

Os dias de Patti Smith são, pelo menos no papel, povoados mais por mortos do que por vivos em profusos registros, por todo o mundo, de lápides de escritores e dos lugares em que viveram e morreram. As referências podem estar no passado e em tradições distantes e consagradas — como nas alusões a Albert Camus e a Jean Genet — ou na chave afetiva da lembrança de Henning Mankell (1948-2015), escritor sueco que criou o inspetor Kurt Wallander, de quem era amiga.

São igualmente complexas as redes de relações entre essas referências: em 27 de outubro, Patti aparece numa foto sem data com Lou Reed para lembrar que ele morreu (em 2013) no mesmo dia em que nasceram Dylan Thomas (1914) e Sylvia Plath (1932). Na página ao lado, Patti posa ao lado do túmulo de Plath. O papel e o peso desse peculiar culto aos mortos pode ser sintetizado pela anotação, publicada há pouco, em 29 de janeiro, sobre Tom Verlaine, o guitarrista da banda punk Television morto um dia antes: “luto não é um sofrimento, é um privilégio”, escreve ela junto à imagem de flores amarelas numa caneca branca, posta ao lado de um manuscrito que não se consegue identificar.

Em sua escrita há um delicado elogio da literatura como fundamento de uma visão de mundo

Como toda reflexão centrada em imagens, a montagem é aqui a forma de estabelecer uma sintaxe. E Patti edita com maestria suas fotos e textos breves, fazendo de cada página dupla ou de cada pequena sequência de páginas legendadas uma unidade de narrativa ou reflexão. Lado a lado, as fotos coloridas de uma casa típica do interior francês e de uma velha ferradura nos leva ao universo de Rimbaud. Naquele terreno, em Chuffilly-Roche, numa outra casa, destruída na Primeira Guerra, o poeta escreveu “Uma temporada no inferno”. Explorando a propriedade, Patti encontrou a ferradura semienterrada. Seria um “sinal de proteção e boa sorte”, ainda que uma placa lembre: “Neste lugar Rimbaud teve esperança, desesperou-se e sofreu”.

Por vezes a montagem está na composição da própria imagem. Uma fotografia de Glenn Gould sobre um exemplar do 2666 lembra que, à beira da morte, Roberto Bolaño lutava “furiosamente” para terminar o que seria seu último romance ouvindo “religiosamente” a célebre versão do pianista canadense para as Variações Goldberg de Bach. Numa página dupla, o túmulo de Susan Sontag no cemitério de Montparnasse, em Paris, aparece lado a lado com uma fotografia da capa de A morte de Virgílio, de Hermann Broch. “Susan tinha uma biblioteca muito grande e bem organizada. Ela sugeriu que me inteirasse da literatura austríaca e me levou a uma seção que incluía Joseph Roth, Robert Musil, Thomas Bernhard e Hermann Broch. Escolhi Broch e alegremente me deixei seduzir.”

Os dias de Patti Smith são, pelo menos no papel, mais povoados por mortos do que por vivos

Há pontos de contato nada desprezíveis entre os perfis intelectuais de Susan Sontag e de Patti Smith, e não seria arriscado apontar uma influência importante da autora de Contra a interpretação. Afinal, nos anos 60, Sontag inventou para si e para o mundo a figura da intelectual americana de talho europeu, que transitava com desenvoltura das alturas do modernismo para a cultura de massa — caminho que, na década seguinte, Patti percorreria no sentido oposto. Na histórica entrevista à Rolling Stone, de outubro de 1979, Sontag explicou a Jonathan Cott por que não era uma frequentadora como outra qualquer do CBGB, casa noturna do East Village que foi templo do punk: “Quando vou a um concerto de Patti Smith eu aproveito, participo, aprecio e estou melhor sintonizada porque li Nietzsche”.

Patti não herdou de Sontag, é claro, o lustroso pedantismo ou a pretensão discutível de explicar a alta cultura à América. Sua relação com a literatura e a arte em geral passa longe da pedagogia. As viagens que se tornam peregrinações literárias, as anotações no Instagram, o material que publica regularmente em sua conta no Substack — onde está sendo escrita uma primeira versão de seu próximo livro — lembram que talvez a vida só seja viável, ou até mesmo suportável, a partir de uma discreta ritualização do cotidiano. Um ritual mínimo que pode começar por uma anotação solta, um trecho de livro sublinhado ou pelo impulso de capturar, no celular mesmo, um momento, lugar ou conjunto de objetos. São esses pequenos gestos que inauguram, em Um livro dos dias, mais uma Patti Smith.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).

Matéria publicada na edição impressa #67 em fevereiro de 2023.