Paulo Roberto Pires
Crítica cultural
Patacoada ou morte
Monarquistas querem expulsar do Museu Nacional seus acervos científicos para homenagear o atraso e o escravismo
08abr2021 | Edição #44Toda vez que ouço falar em “ala ideológica” imagino um desfile de escola de samba nas trevas, com nerds protofascistas, fanáticos religiosos, nazistas, astrólogos, filhos disfuncionais, milicianos, terraplanistas e atores medíocres em animado cortejo rumo à Praça do Apocalipse. Nessa ala, os destaques são, noblesse oblige, os monarquistas, arrasando com seus brocados de atraso e resplendores escravistas. É luxo só. E, no quesito involução, é dez, nota dez!
São esses dom-pedros de camelô que ameaçam agora avançar sobre o Museu Nacional, planejando uma segunda catástrofe depois do incêndio que, em 2018, devastou o antigo Paço Imperial. O objetivo é expulsar do prédio os acervos científicos, uma das poucas colaborações efetivas dos monarcas ao Brasil, para transformá-lo num monumento à estultice, lugar de culto personalista a essa gente avulsa e inútil conhecida mundialmente como “realeza”. O monumento monarquista tem tudo para ser um marco na refundação obscurantista do país. E potencial para se tornar cenário de uma série sobre o sangue azul tropical, o The Cráu Brasil.
Até faz sentido que o país que cheira cloroquina e caminha sem mugir para as UTIs, arma na cintura e máscara instalada onde não bate o sol, queira varrer do mapa as preciosidades que sobreviveram à tragédia no palácio de São Cristóvão. Nas redes sociais, uma otoridade do Instituto Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, repito, do Instituto Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, isso mesmo, do Iphan, reclamou que o lugar estivesse ocupado até então por “esqueletos de dinossauro”.
Os homens de bem não veem a hora de, acompanhados de suas famílias, passar o fim de semana entre tronos e camas, espadas e joias, cetros e coroas. Em vez de levar do passeio noções de arqueologia e botânica, como aconteceu com tantas gerações que visitaram o “museu da Quinta”, os pequenos de bem aprenderão a cultivar desde cedo aquela simbologia reluzente como paetê, que eterniza a repartição do mundo entre opressores e oprimidos, glorifica a exploração colonial e justifica o racismo.
O movimento parece mais uma patacoada dos supostos “tradicionalistas”, que saíram dos bueiros aos magotes nas últimas eleições presidenciais. E até é. Mas na patuscada há método, trabalho contínuo e miúdo de reescrever aqui e ali a história para dela expurgar o que tem de conflitante e emancipatório.
Negacionismo
A estratégia, ainda que claudicante, tem dado mais certo do que seria admissível. Mesmo minoritários, os negacionistas da ditadura militar de 1964 não deixam de ter destaque inaceitável nas micaretas bolsonaristas, babando de vontade de pendurar num pau-de-arara quem merece, ou seja, quem não concorda com eles. A naturalidade com que se fala em golpe e no papel dos militares numa nova quartelada não é menos alarmante: os fantasmas estão bem vivos e, ao que parece, se divertem.
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Os negacionistas da história também estão preocupados com o futuro. Os cortes de verbas do IBGE, numa tentativa de inviabilizar o censo, pretendem apagar para futuras gerações o real impacto do que vivemos, do genocídio que até hoje matou mais de 330 mil e tem tudo para bater recordes. Nos livros de história fascistas, o país que jamais passou por uma ditadura sanguinária terá sido acometido, nos idos de 2020, por uma gripezinha, vítima que foi, é claro, de desígnios divinos – e de perigosos esquerdistas.
No fundo é compreensível a ansiedade de mudar a configuração do Museu Nacional. Para a “ala ideológica” – como se houvesse algum setor do governo que não fosse ideológico, mas essa é outra história – dinossauro bom é dinossauro vivo, de preferência batizado com vários prenomes, sobrenomes quilométricos e orgulhosos de seu passado – futuro? – parasitário. É isso aí: em time que está perdendo não se mexe.
Correção: uma versão anterior desta matéria dizia que a autoridade do Instituto Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional havia reclamado que o lugar estivesse ocupado até então por “esqueletos de dinossauro” a Bernardo Mello Franco, do Globo. A reclamação foi feita em redes sociais.
Matéria publicada na edição impressa #44 em março de 2021.
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