Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

Os incomodados

Longe da extrema-direita e do udenismo, a terceira via do reacionarismo só é progressista até perder prestígio ou poder

24mar2022 | Edição #58

Os incomodados são a terceira via do reacionarismo. Não se confundem com a extrema direita nem professam o moralismo udenista dos nem-nem. Intelectuais à esquerda, eles se desavêm com quem não reza em sua cartilha de progressismo. E, principalmente, com qualquer movimento que ofereça riscos à sua autoridade, simbólica ou real.

Os incomodados assim se definem porque o apoio às causas em que deveras acreditam implica hoje renegociar seus pequenos poderes. E, muitas vezes, ceder posições.

Os incomodados assim se definem porque o apoio às causas em que deveras acreditam implica hoje em renegociar seus pequenos poderes

Os incomodados são os primeiros a se engajar no debate de grandes questões. E os penúltimos a tomar qualquer atitude ao alcance da mão para alterar comportamentos miúdos, que possam tirar essas discussões de um plano abstrato.

Os incomodados apoiam sinceramente a luta antirracista, o combate à homofobia e boa parte das causas que, neste ano eleitoral, estão sendo reiteradamente enxovalhadas pela extrema direita. Mas só o fazem até a página 2, até que a discussão não represente um questionamento, na prática, de sua legitimidade de análise.

Os incomodados são antirracistas até que, por exemplo, se proponha uma redivisão racializada das atividades em seu campo de trabalho ou estudo. Apoiadores das cotas na universidade -— pelo menos num segundo momento —, passam a abominá-las quando implicam mudanças em suas atividades. “Mas isso é cota!”, costumam dizer, quando a ideia de diversidade se superpõe à sua vontade.

Forma de expressão

Os incomodados são muito ciosos do léxico. Adeptos, por escrito, da análise das artes de um ponto de vista ideológico, não toleram expressões diretas, às vezes simplificadoras, porém necessárias à ação: “Mas isso é política”, protestam, com boquinha de nojo de grã-fina rodriguiana.

Os incomodados têm horror a práticas como, por exemplo, a linguagem neutra — para eles um claro sinal de decadência cultural e populismo. Historicamente, jamais manifestaram tamanha indignação com os valores e práticas que levaram a esse tipo de protesto.

Os incomodados são solistas no coro das críticas ao “identitarismo”, termo que, ao expressar o que consideram particularidade, seria redutor e injusto. A seu uso contrapõem uma espécie de universalismo — que nada mais é do que o identitarismo dos vencedores.

Os incomodados topam qualquer relativismo que não altere as políticas de distinção

Os incomodados de hoje são democratas ilibados de ontem. Nunca conjugaram o verbo “proibir”, pois quem domina a arte de favorecer não perde tempo em vetar. Protegidos pela cultura do escambo de influências, abespinham-se por alterar as regras de sua economia de trocas.

Os incomodados só se revelam abertamente como tais em privado. Aqui e ali, em breves comentários e leve ironia, mostram que formam uma fraternidade de injustiçados e incompreendidos pela vulgaridade da choldra e pelas formas de reivindicação.

Os incomodados topam qualquer relativismo que não altere as políticas de distinção. Como o maestro Pestana, “O homem célebre” de Machado de Assis, simulam amar o maxixe para desfrutar com mais conforto da sonata — cultuam esta para sobreviver àquele.

Em breves comentários e leve ironia, mostram que formam uma fraternidade de injustiçados e incompreendidos

Os incomodados estão sempre prontos para a evangelização da turba. À vulgaridade das militâncias e das redes sociais — pega bem não participar delas — propõem a verdadeira cultura, os grandes nomes, o passado glorioso tal qual se reflete no presente exclusivista.

Os incomodados que mudem, convida o Brasil de hoje, cheio de novas possibilidades. Ou, se preferirem ouvir o Brasil de suas avós, que se mudem. 

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).

Matéria publicada na edição impressa #58 em fevereiro de 2022.