Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

O violento ofício de escrever

A execução de Rodolfo Walsh faz 45 anos como advertência para a responsabilidade do intelectual em países sob permanente ameaça de golpismo civil e militar

10fev2022 | Edição #55

De guayabera bege, calça e sapatos marrons, Rodolfo Walsh caminha pelas ruas de Buenos Aires com a calva protegida por um chapéu de palha. Carrega uma pasta com cópias da “Carta aberta de um escritor à Junta Militar” e a escritura da casa simples de San Vicente, lugarejo a sessenta quilômetros da capital onde passara a viver com a mulher, Lilia Ferreyra. Levava ainda uma Walter PPK calibre 22, arma leve que, tinha plena consciência, não o safaria se caísse nas mãos dos genocidas à frente da última e mais sangrenta ditadura da história da Argentina. 

Seu assassinato lembra que jornalismo é atividade incompatível com contorcionismos retóricos ou moderação com fins lucrativos

A viagem de trem fora planejada para despachar pelo correio cópias da “Carta” a jornais e revistas, na Argentina e no exterior, marcando um ano do golpe que depusera Isabel Perón. Era o primeiro texto em muito tempo que o escritor, identificado em documentos frios como Norberto Pedro Freyre, voltaria a assinar com seu nome verdadeiro. “Vou voltar a ser Rodolfo Walsh”, disse a Lilia, determinado a romper o silêncio da clandestinidade depois de completar cinquenta anos. 

A militância no grupo armado Montoneros deixara em suspenso a vida civil de Walsh e uma carreira literária consagrada. Os contos que publicou em livros e revistas nas décadas de 50 e 60 — reunidos em três volumes pela Editora 34 — foram recebidos com a unanimidade a que fazem jus. Há poucas dúvidas ainda de que não é possível falar em jornalismo sério sem passar por Operação Massacre (Companhia das Letras). Publicada como livro em 1957, a intricada reportagem narrativa sobre o fuzilamento de civis expôs a barbárie de um outro golpe militar, que dois anos antes interrompeu o segundo dos três mandatos de Juan Domingo Perón na presidência. 

Depois de se despedir de Lilia, ela também encarregada de postar cópias da “Carta”, Walsh foi ao encontro de um companheiro — que havia “caído” e estava acompanhado por um Grupo de Tarefas do Exército. Percebeu a emboscada logo ao chegar à esquina das ruas San Juan e Entre Ríos. Ainda disparou o primeiro tiro de 22. Metralhado, foi levado à Escola Superior da Armada (Esma), instalação militar transformada pela ditadura em centro de tortura, campo de concentração e extermínio. Prisioneiros da Esma puderam entrever Walsh numa maca, sem camisa, crivado de balas. O corpo jamais foi encontrado. 

Há exatos 45 anos, na tarde do 25 de março de 1977, começava a ser escrita essa história dilacerante, que deve sempre ser recontada. É, antes de mais nada, uma advertência sobre a ação nefasta, eivada de voluntarismo hipócrita e golpismo, que tem marcado o desastroso papel das Forças Armadas na história recente da América Latina. E lembra que jornalismo, diferentemente do que vimos em momentos cruciais de 2016 para cá, é atividade incompatível com contorcionismos retóricos ou moderação com fins lucrativos. A combinação do esquecimento histórico com a negligência intelectual ajudou a normalizar a extrema direita, que desde então vem corroendo a democracia brasileira.

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“A censura à imprensa, a perseguição aos intelectuais, o arrombamento de minha casa no Tigre, o assassinato de amigos queridos e a perda de uma filha que morreu combatendo os senhores são alguns dos fatos que me obrigam a esta forma de expressão clandestina, após ter manifestado livremente minha opinião como escritor e jornalista durante quase trinta anos”, diz a carta, uma fina análise da ação dos militares. “Aquilo que os senhores chamam de acertos”, escreve Walsh, “são erros, aquilo que reconhecem como erros são crimes, e aquilo que omitem são calamidades.” 

A carta só seria publicada na íntegra em 24 de abril de 1977, um mês depois do assassinato e desaparecimento de seu autor. Tomás Eloy Martínez, escritor e jornalista argentino, foi o responsável pela edição em página dupla no El Nacional, jornal de Caracas em que trabalhava. Trechos dela encontram-se hoje gravados em painéis de vidro entre os eucaliptos que cercam a ex-Esma, a poucos metros do prédio onde o corpo supliciado de Walsh foi visto pela última vez. Desde 2004, o complexo de instalações militares abriga o Espaço Memória e Direitos Humanos — nas palavras de seus fundadores, uma “homenagem às vítimas do terrorismo de Estado e condenação dos crimes contra a Humanidade”. 

Nas instalações da Esma a obra de Walsh teve fim e renasceria. Depois de o executarem, os militares seguiram para San Vicente. Metralharam e destruíram a casita onde vivia e confiscaram todos os papéis que viram pela frente — depositando-os desordenadamente no centro de torturas, como era a rotina com bibliotecas, objetos pessoais e até roupas dos sequestrados. 

Forçados a trabalhos de todas as ordens, incluindo funções burocráticas, prisioneiros da Esma puderam identificar a autoria das páginas manuscritas e datilografadas e, correndo risco de morte, conseguiram escondê-las e contrabandeá-las. Assim se tornariam públicos outros dois textos decisivos para a obra de Walsh — aquele que ficaria conhecido como “Carta a Vicki” e um outro que o próprio escritor batizara “Carta a meus amigos”.

Em ambas Walsh narra, de pontos de vista diferentes e complementares, a morte de María Victoria, sua filha mais velha. Jornalista que via na profissão um caminho para a militância, Vicki aderiu aos Montoneros aos 22 anos e morreu aos 26, no cerco de 150 homens do Exército à casa onde se escondia com oito companheiros do grupo e a filha pequena. “Vocês não nos matarão. Nós escolhemos morrer”, teria gritado ela, do alto de um terraço, antes de se suicidar com um tiro na boca diante das tropas. Vestindo camisola de dormir, metralhadora em punho, Vicki tinha sustentado o tiroteio por mais de uma hora — segundo testemunhas, às gargalhadas.

“Embaixo, já não havia resistência”, escreve Walsh ao descrever o cenário na casa da rua Corro. “O coronel abriu a porta e atirou uma granada. Os oficiais entraram em seguida. Encontraram uma menina de pouco mais de um ano sentadinha na cama e cinco corpos.” Na outra carta, a que é dirigida à memória de Vicki, lembra como recebeu a notícia, pelo rádio, em meio a uma reunião. “Escutei teu nome, mal pronunciado, e demorei um segundo para assimilar. Comecei a me benzer maquinalmente, como fazia quando era menino. Não cheguei a concluir o gesto. O mundo parou durante aquele segundo. Depois, disse a Mariana e Pablo: ‘Era minha filha’.”

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“Carta a Vicki” e “Carta a meus amigos” não são, é óbvio, mera expressão de subjetividade de um homem em conflito ou enlutado. Tampouco encerram confissões reveladas indiscretamente depois da morte do autor. Walsh as reescreveu diversas vezes, chegando a discutir detalhes com Patricia, a filha mais nova, que, por sinal, tinha restrições ao tom do relato da morte da irmã. Em Oración — Carta a Vicki y otras elegías políticas, sofisticado ensaio publicado em 2018, a jornalista e escritora María Moreno dá a esse capítulo final da obra de Walsh a densidade que muitas vezes se perde sob a estridência política, dissecando o papel das mulheres no episódio e, também, na luta armada. 

Moreno lembra que as cartas finais de Walsh pertencem a uma tradição literária e política. Remetem a José Martí e aos “despachos” nos quais, como correspondente nos Estados Unidos, o poeta cubano lançava um olhar crítico sobre a realidade do capitalismo no século 19. Evocam o “Eu acuso”, artigo em forma de carta em que Émile Zola se dirige ao presidente da França e é considerado a certidão de nascimento do intelectual moderno na defesa de Alfred Dreyfus, militar vítima de um complô antissemita. De forma mais imediata, Walsh interviria ainda num circuito de “cartas anônimas”, todas falsas, que a ditadura distribuía pela imprensa com relatos de militantes arrependidos e suas sofridas famílias.

Ao falar sobre a morte da filha, testemunhos diretos são invocados para que não prevaleça, no balanço final da História, a escrita da barbárie

A estratégia epistolar é coerente com a obsessão de Walsh em fazer da escrita uma forma de justiça — a contraprova, sempre amparada em fatos, das narrativas do Estado. Ao dirigir-se à Junta Militar, são abundantes datas e estatísticas; ao falar aos amigos sobre a morte da filha, testemunhos diretos são invocados para que não prevaleça, no balanço final da História, a escrita da barbárie. “O testemunho é sempre de hoje”, escreve María Moreno sobre a importância da primeira pessoa nas cartas. “Está atravessado pela necessidade de ser crível diante das suspeitas que possam pairar sobre o sobrevivente,  a memória coletiva, as interpretações e as oscilações ideológicas de vidas sobre as quais tentamos dar um sentido para que possamos seguir em frente.” 

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Até o fim Walsh manteve o que Ricardo Piglia, um de seus leitores mais perspicazes, via como uma original tensão entre ficção e política, relação que considera “central” na história da literatura argentina  — e que também dá muito o que pensar no contexto brasileiro. Piglia observa que o escritor e jornalista sempre procurou “trabalhar essa oposição e acirrá-la”. Sua ficção breve, elíptica, é impermeável a “contaminações circunstanciais” e referências diretas, ainda que dê ao leitor as pistas para compreender o contexto, quase sempre político, como no clássico “Essa mulher”, conto em que um jornalista e um militar negociam informações sobre o destino de um cadáver insepulto — que é o de Eva Perón, jamais mencionada. 

Já sua obra de não ficção, de Operação Massacre às cartas e aos panfletos, se beneficia da “habilidade de narrador” para atingir diretamente os leitores. O pai emocionalmente destroçado que assina as cartas é também o militante que não recua de suas convicções. “Hoje, no trem, um homem dizia: ‘Ando sofrendo muito. Queria me deitar, dormir e acordar daqui a um ano’. Falava por ele, mas também por mim”, escreve Walsh, preferindo o potencial dramático de uma cena ao registro puro e simples de uma experiência-limite. No mesmo tom passional, mas com outros objetivos e estratégias, avalia: “Sua morte lúcida é uma síntese de sua curta e bela existência. Não viveu para si mesma, viveu para os outros, e esses outros são milhões. A morte que teve, sim, essa morte foi gloriosamente sua, e nesse orgulho eu me afirmo, por meio dela sou eu quem renasce”. Ao dirigir-se aos militares, desafia: “Sem esperança de ser ouvido, com a certeza de ser perseguido, mas fiel ao compromisso que há muito tempo assumi de dar testemunho nos momentos difíceis”. 

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Aficionado de romances policiais e xadrez, o jovem Rodolfo Walsh viu mudar os rumos de sua vida quando iniciou a reportagem que resultaria em Operação Massacre. Ali percebeu que sua vocação jamais se realizaria plenamente nos limites estritos da literatura. “Para além de minhas perplexidades íntimas”, escreveria ele num curto ensaio autobiográfico, “havia lá fora um mundo ameaçador.” Sua vida trágica foi dedicada a registrar esse ambiente hostil que é, até que se prove o contrário, a vida de todos nós. Para melhor retratá-lo, mobilizou o que pôde: imaginação desenfreada e investigação minuciosa, estridência provocadora e silêncio estratégico. A um dado momento, entenderia a natureza profunda de sua profissão, propósito de uma vida: “De todos os meus ofícios terrestres, o violento ofício de escrever era o que mais me convinha”.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).

Matéria publicada na edição impressa #55 em outubro de 2021.