Paulo Roberto Pires
Crítica cultural
O show de Truman
Ignorado pelos meios literários, o centenário de Truman Capote lembra que é impossível e inútil separar o personagem do escritor
25jul2024 • Atualizado em: 02ago2024 | Edição #84Foi na manhã de uma sexta-feira, 26 de setembro de 2016. Na periferia de Los Angeles, a plateia da Julien’s, “a casa de leilões das estrelas”, disputava uma curiosa memorabilia de Truman Capote: chapéus e revistas, anotações e lenços de seda, paletós e patins, suspensórios e frascos de remédios, a camisa polo que vestia quando morreu e um livro de condolências de seu funeral. O item mais cobiçado foi arrematado depois de doze lances. Até hoje não se sabe quem, pelo telefone, ofereceu 43 750 dólares por uma caixa de madeira com as cinzas do autor de A sangue frio.
Apesar de desconcertante, a nota frívola não é de todo estranha a Truman Capote. Afinal, ele mergulhou fundo na superficialidade — e a posteridade lhe deu o troco. Neste que é o ano de seu centenário, celebra-se mais o personagem que o escritor. Inútil buscar edições especiais, colóquios ou outras mesuras literárias. A efeméride é dominada por Feud: Capote vs. The Swans (Disney+), série ficcional que termina com o real leilão das cinzas — e reitera a impressão de que toda uma obra parece ter sido eclipsada pelas intempéries da biografia. Mais exatamente da porção final dela, os anos em que foi tragado por uma espiral de fama, intriga, álcool, drogas e infelicidade. Separar uma coisa da outra talvez seja inútil, talvez impossível: Capote sempre foi veneno e remédio, a peçonha da mundanidade e o antídoto a ela.
Assinatura e imagem
Desde Other Voices, Other Rooms, o romance de estreia, assinatura e imagem de Truman Capote são uma coisa só. Publicado no mesmo 1948 em que saíram Os nus e mortos, de Norman Mailer, e A cidade e o pilar, de Gore Vidal, o livro deu o que falar: foi escorraçado com notas de homofobia, saudado como grande novidade. Discutia-se o talento do escritor de 23 anos — premiado aos 21 por um conto perfeito, “Miriam” — e com igual fervor a foto que ocupava toda a quarta-capa da edição da Random House, um portrait ostensivamente gay, em que ele aparece recostado numa cadeira, lânguido, encarando o leitor pela câmera de Harold Hama.
Dez anos mais tarde, quando Breakfast at Tiffany’s chegou às livrarias, mulheres mais ou menos famosas, mais ou menos próximas dele, àquela altura uma celebridade, juravam ter sido “o” modelo para Holly Golightly, a personagem que seria vivida por Audrey Hepburn na adaptação do livro para o cinema, Bonequinha de luxo. Recusada pela Harper’s Bazaar, a novela saiu na Esquire simultaneamente à versão em livro, explodindo em vendas nas bancas e nas livrarias.
O anonimato não era, portanto, uma opção disponível para Capote quando, em dezembro de 1959, ele desembarcou em Holcomb para investigar o impacto do massacre de uma família sobre a cidadezinha perdida no Arkansas. Em troca de informação, o improvável repórter da New Yorker não se furtava a frequentar socialmente pacatas famílias locais, deleitando-as com fofocas picantes, narradas com seu lendário histrionismo e temperadas pelo virtuosismo do name-dropping.
Da apuração ao lançamento, nada seria usual em A sangue frio (Companhia das Letras), o livro que resultou daquela viagem. Torturado por dilemas morais envolvendo os assassinos, bebendo industrialmente, Capote levou quase seis anos para publicar a reportagem nas páginas da New Yorker. A expectativa era tamanha que uma pequena multidão lotou a leitura pública em que antecipou trechos do manuscrito. No final de 1966, celebrou o megassucesso do “romance de não ficção”, aquele que daria um chão seguro ao new journalism, com o antológico Black and White Ball, um exclusivíssimo baile de máscaras que ocupou os salões do Plaza Hotel. “O baile foi uma de suas principais obras. Tão importante quanto alguns de seus contos”, diria Leo Lerman, lendário editor da Vogue e amigo de Capote. “Eu cheguei de algum lugar e o encontrei cercado de cadernos. Eu me perguntava: o que ele está escrevendo? Era o baile.”
Capote sempre foi veneno e remédio, a peçonha da mundanidade e o antídoto a ela
Outras colunas de
Paulo Roberto Pires
As menos de duas décadas que lhe restavam — ele morreria há exatos quarenta anos, em agosto de 1984 — foram assombradas por um projeto inacabado que dragou um milhão de dólares em adiantamentos. Súplicas atendidas (L&PM) seria um romance em sete capítulos, referência aos sete livros de Em busca do tempo perdido — e ao que havia de crônica social na obra-prima de Marcel Proust. No lugar do monde parisiense, Capote escreveria sobre as altas rodas nova-iorquinas, que frequentava cercado por seus cisnes, como chamava as entediadas milionárias que dão título à série criada por Ryan Murphy.
“La Côte Basque, 1965”, antecipação do primeiro capítulo, selaria seu destino e do livro. Publicado na Esquire em 1975, não tratava de madeleines ou memória involuntária, mas dos podres dos bacanas que o afagavam, ouvidos nas mesas do restaurante francês a que se refere o título. Babe Paley, a melhor amiga, se sentiu ferida de morte com a exposição das traições do marido, Bill Paley, o manda-chuva da cbs. Tendo lido o texto antecipadamente, Ann Woodward, ex-call girl e viúva de William Woodward Jr., não suportou a acusação de que teria matado o milionário com quem se casara: suicidou-se antes do lançamento da Esquire.
Truman Capote, o traidor; o oportunista; o gênio que revolucionou o jornalismo; o escritor que se perdeu; o farsante. Os epítetos se multiplicaram na velocidade das platitudes que os sustentam. Ao prefaciar o póstumo Primeiros contos (José Olympio), um dos mais sagazes leitores de Capote, Hilton Als, lança uma luz menos óbvia sobre os usos que o escritor fez do mundo que o cercava:
Era raro que um ficcionista moderno abrisse mão de sua relativa liberdade em troca das exigências do jornalismo, mas creio que Capote sempre gostou da tensão inerente às trapaças com a verdade. Sempre quis elevar a realidade acima da banalidade dos fatos.
Neste prefácio e num outro ensaio, “As mulheres”, incluído em Garotas brancas (Fósforo), Als observa como a singularidade de Capote passa pelas turbulências de gênero — e como estas estão intimamente ligadas à instabilidade dos gêneros literários. “Truman Capote tornou-se mulher em 1947, ano em que essa fotografia foi tirada”, escreve ele sobre a famosa imagem do livro de estreia. “Na verdade, não é uma fotografia, mas uma sombra moldada pela publicidade, e que sai do outro lado como outra coisa qualquer. […] Trata-se de uma imagem que é afirmação, propósito, afirmando o seguinte: eu sou uma mulher”.
Capote deixaria de lado essa sensibilidade literária feminina quando parte para o célebre “romance de não ficção”. “Ele se tornou homem com a publicação de seu ‘grande’ livro”, observa Als. “A sangue frio se propôs a provar, em parte, que Truman Capote não era mais uma autora lírica […], mas sim um escritor validado por sua experiência no mundo dos fatos, uma tradição literária principalmente masculina”. Para o crítico cultural, o mais interessante em atividade, o livro tido como falhado, amaldiçoado, seria uma realização literária plena: “Capote não tinha sido ele mesmo como escritor até Súplicas atendidas, romance que surgiu de seu isolamento e sua autorrealização”.
Inimigo de consensos e estabilidade, Hilton Als faz de Garotas brancas uma referência no ensaísmo queer
Encontro com Baldwin
“A vida secreta dos cisnes”, quinto episódio de Feud: Capote vs. The Swans aponta para essa leitura mais nuançada. O roteirista Jon Robin Baitz descolou-se de Capote’s Women: A True Story of Love, Betrayal, and a Swan Song for an Era, livro de Laurence Leamer que inspira a série, para criar uma espécie de peça dentro da trama. No fundo do poço, isolado pelos grã-finos e expondo-se em talk shows sensacionalistas, Capote aceita o convite de James Baldwin, que já vivia na França e estava de passagem por Nova York, para almoçar. Os dois se encontram no “lugar do crime”, o La Côte Basque. “Notei que grande parte das minorias, os negros, graças a Deus, asiáticos, mulheres, judeus, todos recorrem à comunidade quando precisam. Os homossexuais nem tanto. Ainda não”, diz o Baldwin vivido por Chris Chalk para o Capote de Tom Hollander. “Hoje vou ser sua comunidade, porque você precisa de uma”, oferece.
O encontro nunca aconteceu. É certo que não foram inimigos — e tampouco chegaram a ser próximos. Em 1962, escrevendo a Newton Arvin, crítico que fora seu namorado na juventude e a quem chamava de “minha Harvard”, Capote não poupa Baldwin: “Odeio a ficção dele: é mal escrita e entediante de dar no saco. Às vezes penso que seus ensaios são pelo menos inteligentes, embora quase sempre terminem com um tom falsamente esperançoso, como quem canta um hino”. Em outra carta, no mesmo ano, chega o mais perto do que tem como elogio: “Ele é uma misteriosa mistura de verdadeiro talento com verdadeira fraude. Mas gosto dele”.
Capote ‘sempre quis elevar a realidade acima da banalidade dos fatos’, diz Hilton Als
Fazê-los sentar à mesma mesa e passar o dia juntos — depois do almoço, os dois vão a um museu, tomam drinks num bar gay e terminam numa feroz discussão na casa de Capote — é menos licença poética do que uma intervenção crítica do roteirista. Contemporâneos que nasceram no mesmo ano, 1924, os dois trilhariam caminhos paralelos — Baldwin como intelectual público, Capote como figura pública. No episódio, o autor de O quarto de Giovanni vem lembrar ao escritor o ponto em que convergem raça, gênero e, o que parece uma aberração num mundo de “cisnes”, ação política. Num deliberado anacronismo, a série avalia 1975, quando se passa a ação, com as lentes de 2024.
“Estão desprezando seu trabalho como um pequeno roman à clef lascivo, mas é muito mais do que isso”, observa Baldwin para um Capote que parece feliz por ser compreendido: “Eu tentei atingir os homens, não as mulheres”. Súplicas atendidas, argumenta Baldwin, só é um escândalo pelo mal estar que inflige à elite branca, intrinsecamente classista e racista. “É tudo para o mundo deles, de mais ninguém”, confirma Capote. “O Met, o Jardim Botânico, a Public Library, a Frick Collection, é para a preservação do monumento deles”. Entre telas de arte abstrata, Baldwin diz que é preciso parar de pedir desculpas aos ofendidos pelo livro, e estimula Capote a manter-se firme e continuar a escrever: “Você é a bicha mais durona da cidade”.
Ao que tudo indica, Truman Capote continua barrado em alguns dos monumentos “deles”. A Library of America, coleção bancada por doadores que desde 1982 se tornou o panteão da grande literatura norte-americana, o ignora. Neste que também é o ano de seu centenário, James Baldwin ganha na Library uma caixa reunindo os três livros que enfeixam sua obra, mesma configuração de uma edição especial que celebra os noventa anos de nascimento de Joan Didion. A coleção, que editou a obra completa de Philip Roth em onze volumes, publica ainda este ano Latino Poetry: The Library of America Anthology e mais um tomo dedicado a Ernest Hemingway. A Capote, dispensa o inconfundível silêncio dos ofendidos.
Matéria publicada na edição impressa #84 em agosto de 2024.
Porque você leu Crítica Cultural
Horas de leitura
Para aplacar ou aumentar a ansiedade das listas de melhores do ano, cinco livros que desafiam o senso comum
NOVEMBRO, 2024