Crítica Cultural,

O orgulho burrista

Das fake news ao doisladismo, a disseminação da estultice é a sequela mais notável das trevas bolsonaristas

10nov2022 | Edição #64

“Hoje se perdeu o pudor de ser burro”. Assim falou Casimiro, o Zaratustra do streaming, indo direto à sequela mais notável — e, ao que parece, definitiva — do bolsonarismo. Na nova era das trevas instalada pelo Cavalão defende-se, segundo Casimiro, o “direito de ser burro” como manifestação inalienável de liberdade de expressão. Não há qualquer constrangimento, prossegue ele, na exposição da burrice em “grupos de burros” que aplaudem e confirmam os disparates, blindando o asinino da vez de tudo o que poderia lhe contrariar ou contradizer, de evidências físicas e históricas às torções na lógica elementar.

Aos olhos do burro militante, o absurdo cintila como revelação estarrecedora, que ele passa a disseminar como sinal de sagacidade

O grau zero do burrismo como ideologia é a crença nas fake news e sua disseminação. Dos chips de controle que teriam sido implantados pela vacina contra a Covid-19 aos risíveis relatórios que detalham fraudes nas urnas eletrônicas, o burrismo para colorir é constrangedoramente simples. Quanto mais absurda e abilolada a história, melhor: aos olhos do burro militante, o absurdo cintila como revelação estarrecedora, que ele toma para si como verdade e passa a disseminar como sinal de inteligência e sagacidade na contramão de versões que reputa “oficiais” e, portanto, mentirosas.

Arremedo de pluralismo

A crítica aberta à razão burrista não é exatamente popular graças ao doisladismo, forma sofisticada do burrismo e que se consolidou no debate público ao longo dos anni horribiles que vêm se sucedendo desde 2018. Arremedo de pluralismo, o princípio segundo o qual agressor e agredido devem ser igualmente considerados viceja até mesmo em setores da imprensa profissional e alimenta tanto a platitude de pseudoconceitos de análise política como “bolsolulismo” quanto atrocidades como a ideia de “racismo reverso”.

Não há nada de propriamente novo na ideia de que a burrice e a estupidez devam ser tomadas como “diferença” e respeitadas enquanto tal. Vivo citando aqui o “Retrato do antissemita”, de Jean-Paul Sartre, e é esse ensaio curto e combativo de 1945 que mais uma vez ilumina a complexidade de 2022. Anti-intelectualista, o antissemita de então e os extremistas verde-e-amarelos de hoje sustentam um “elitismo do pobre”, hordas unidas em torno das estultices que defendem para ostentar a precariedade intelectual evidente como ponto de vista crítico aos valores estabelecidos. É uma aristocracia às avessas.

Não há nada de propriamente novo na ideia de que a burrice e a estupidez devam ser tomadas como “diferença” e respeitadas enquanto tal

Os burros-alfa de 2022 têm como principal credencial os números que os conduziram e sustentam na arena pública: os doisladistas defendem que toda e qualquer crítica deva ser atenuada diante a superlativa amplificação dos zurros. Se, por exemplo, um podcast é ouvido por sei lá quantos milhares de seguidores, as restrições a ele costumam ser reconsideradas e redimensionadas levando em conta o alcance de seu público — mesmo que o tal programa seja, na prática, uma catarata de bobagens jorrando da boca de tolos que reproduzem preconceitos em série e, não raramente, fazem apologia do racismo.

Quem se arrisca a partir com tudo para cima destes falastrões merece a pecha de elitista, de ser surdo à “massa”, de não perceber o mecanismo da burrice e, portanto, de não compreendê-la — aliás, é prudente jamais usar “burrice” para designar o produto do burrismo. Daí a importância da crítica de Casimiro, que navega pela estratosfera das audiências sem, no entanto, reproduzir seus clichês ou cair em suas armadilhas.

O burrismo é resultado do ressentimento, um dos valores essenciais do bolsonarismo e o combustível mais eficiente para impulsionar o ódio

Se nos anos 60 o Brasil pôde rir de seus próprios equívocos no Festival de Besteira que Assola o País, hoje deveria estar preocupado com o burrismo rampante. As besteiras enfileiradas nas antologias de Sérgio Porto eram, em sua maioria, produto do atraso geral da nação. O burrismo é diferente, é resultado do ressentimento, um dos valores essenciais do bolsonarismo e o combustível mais eficiente para impulsionar o ódio.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).

Matéria publicada na edição impressa #64 em dezembro de 2022.