Crítica Cultural,
O choro dos nem-nem
Corresponsáveis pela eleição do Führer de chanchada, aqueles que não se posicionam preferem atacar as esquerdas a enfrentar a extrema direita
27abr2022No momento em que a França derrota mais uma vez a extrema direita, o que se ouve por aqui é o choro ranheta dos nem-nem. Corresponsáveis por levar ao poder o Führer de chanchada, os adeptos de escolhas difíceis não conhecem limites para suas convicções narcísicas. Mais importante do que 700 mil mortos, rachadinhas, viagras e cloroquinas a mancheias, mais importante do que o repúdio que dizem sentir ao Cavalão e o apreço que declaram à democracia é a necessidade de culpabilizar as esquerdas por tudo o que deu, dá e dará errado no país.
O momento é crítico para o país, mas os nem-nem acreditam ser mais crítico para eles próprios
Virtuosos na arte de lavar as mãos, os laboriosos nem-nem construíram para si um centro democrático irretocável. De lá, enxergam com simetria e nitidez todo o espectro político e, a partir desse ponto de vista privilegiado, constroem sua inabalável razoabilidade. É tudo perfeito — tirando o fato de que, como poderia dizer aquela antiga autoajuda de gaivota, o centro é um lugar que não existe.
O momento é crítico para o país, mas os nem-nem acreditam ser mais crítico para eles próprios. Nos limites refrigerados de seus privilégios — que para eles é o mundo —, os nem-nem estão convencidos de que a alternativa à extrema direita que apoiaram por negligência é um amiguinho imaginário, ou melhor, um candidato que possam chamar de seu, que não pontue nas pesquisas mas atenda às suas expectativas mais singelas.
Conto de fadas
Encarapitados no muro que reergueram ao longo dos últimos quatro anos, os nem-nem se portam como princesas de contos de fada. Entre suspiros e olhinhos revirados, esperam um candidato que os conquiste dizendo a coisa que acham certa, na hora que julgam propícia, do jeito que querem ouvir. Ainda hoje, acham “agressivo” chamar fascistas de fascistas, mas aceitam uma reforma da Previdência gentil e elegante para perpetuar a desigualdade.
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Os nem-nem se acalmam com a repetição, de tempos em tempos, de análises pusilânimes e projeções inconsistentes sobre o quadro político. Por alguns meses, ficaram alegrinhos com o anúncio da terceira via, a estrada real que os afastaria da esquerda e abriria um atalho para uma direita que come com talheres. No meio da tal via, no entanto, deparam com a tal da realidade, inconveniência terrível para qualquer devaneio.
Para os nem-nem sempre haverá Paris
O novo remedinho para os chorões é o debate, popularíssimo, sobre “os erros na comunicação da esquerda”. Parece uma pauta, mas é um gênero jornalístico que segue receita: ouvem-se os especialistas de sempre para referendar com argumentos genéricos o ponto de partida da discussão. E tome palpite sobre internet, “papel dos evangélicos” e “bolhas”, alimentando em entrevistados e articulistas a expectativa pela incrível monetização da platitude — também conhecida como consultoria.
Pied-à-terre
Mas para os nem-nem sempre haverá Paris.
Aos empreendedores, fica a dica: há mercado entre esses bem-nascidos para um pacote de viagem prime-top no segundo turno das eleições. O embarque pode ser na sexta-feira 28 de outubro, e o alegre grupo desfrutará do exílio customizado por uma semana. A agenda é livre e deve apenas evitar a bela embaixada do Brasil, onde no domingo 30 cidadãos menos irresponsáveis estarão assumindo a escolha entre a democracia e a barbárie.
No meio da tal terceira via, se deparam com a tal da realidade, inconveniência terrível para qualquer devaneio
Se as urnas confirmarem o projeto neofascista (toc, toc, toc), o roteiro pode incluir uma palestra-desabafo com um indignado derrotado no primeiro turno (que já terá chegado à cidade) e sessões de negócios com consultores imobiliários. Pois, para conviver com esses brutamontes que ajudaram a eleger, só mesmo mantendo um pied-à-terre a uma distância segura.
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