Crítica Cultural,

Mocotó ou morte

Depois de Pedro I e Jaguar, o inquilino do Planalto dá o grito de desrespeito à Constituição, às leis e a nós, que financiamos as retretas fascistas do 7 de setembro

09set2021 | Edição #49

O primeiro grito envolvia muitos milicos (23), alguns civis de casaca (dez) e um trabalhador descalço, tangendo quatro cabeças de gado. No centro da imagem, encarapitado num cavalo e com a espada em riste, Pedro de Alcântara Francisco Antônio João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon soltava o brado retumbante: “Independência ou morte!”. Desde 1888, quando Pedro Américo concluiu o quadro, a cena às margens do rio Ipiranga, em São Paulo, virou o emblema da suposta independência desse triste torrão. Talvez venha daí, do 7 de setembro de 1822, a ideia de que, no Brasil, tudo se resolve no grito.

Pouco menos de um século depois, a mais de quatrocentos quilômetros do Ipiranga, o segundo grito mobilizava uma turma de jornalistas e humoristas no bairro carioca do Flamengo. Envolvia os milicos, os cavalos, o caboclo e o gado. Um dos gaiatos, Sergio Jaguaribe, o Jaguar, recortou o quadro de Pedro Américo e, em novembro de 1970, o fez imprimir no Pasquim, não sem antes acrescentar à boca de Pedro I um balãozinho com nova versão do grito de liberdade: “Eu quero mocotó!!”.

Os milicos, não os do quadro, os do Planalto, não acharam graça em ver o Demonão, apelido de alcova do imperador, cantando o refrão de um dos hits do momento, “Eu também quero mocotó”, de Jorge Ben, que Erlon Chaves e a Banda Veneno apresentaram no quinto Festival Internacional da Canção. Foi o pretexto para prender, por mais de dois meses, quase toda a redação.

O terceiro grito, como o primeiro, aconteceu neste 7 de setembro. Cento e noventa e nove anos depois do primeiro e a pouco mais de dez quilômetros do Ipiranga, envolveu um número não determinado de milicos e milhares de civis no papel de gado. No lugar do cavalo, um trio elétrico e, no lugar do Demonão, o Cavalão, apelido de caserna do primeiro e único soberano do Império das Rachadinhas. No ritmo entrecortado que lhe é peculiar, de quem lê um mau texto num teleprompter empacado, atacou a democracia que o elegeu, desafiou a Justiça e a lei. Prolixo, retumbou: “E aqueles que pensam que com uma caneta podem me tirar da presidência, digo uma coisa pra todos: nós temos três alternativas: preso, morto ou com vitória. Dizer aos canalhas que nunca serei preso”. Delinquência ou morte?

Ao faltar com o respeito à Constituição, às leis e, principalmente a nós, cidadãos que financiamos a micareta nazi enquanto falta comida e vacina, o Presidente da República nos desobriga de respeitá-lo

Na falta do poder de síntese atribuído à D. Pedro I, o Fuhrer do leite condensado nos induz a muitos raciocínios e levanta múltiplas dúvidas. Pela sobeja habilidade em fazer amigos e influenciar pessoas, é mesmo pouco provável que, pelo menos por enquanto, passe uma noite sequer no xilindró. A acreditar no resultado de todas as pesquisas da intenção de voto, é mais fácil que um bolsominion leia (e entenda) Judith Butler do que seja reeleito em 2022. No que diz respeito à morte, não opino: a autoridade no assunto é ele, entusiasta do fuzil, condescendente com massacres de indígenas e pobres e corresponsável pela morte de quase 600 mil brasileiros na pandemia.

Fim das nuances

Ainda assim, devemos admitir que, com possível exceção de um vinil do Sérgio Reis, tudo na vida tem um lado bom. E o resultado imediato das retretas fascistoides não foi o fim da democracia, mas o das nuances. No Rio de Janeiro, berço das milícias, Queiroz, o símbolo máximo do cidadão de bem, teve dificuldades em se desvencilhar dos fãs. Em Brasília, o líder máximo, de faixa e tudo, desfilou orgulhoso no Rolls-Royce que, depois de transportar Charles De Gaulle e Carluxo, foi pilotado por um Nelson Piquet consagrado como Uber de autocrata. Na Paulista, um descendente direto do Demonão, aquele lá do primeiro grito, também deu seu decrépito apoio à barbárie.

Ao faltar com o respeito à Constituição, às leis e, principalmente a nós, cidadãos que financiamos a micareta nazi enquanto falta comida e vacina, o Presidente da República nos desobriga de respeitá-lo. Ou melhor, marca uma linha muito clara: quem, tendo voz pública, ainda encontrar adversativas na análise do mais descarado ataque à democracia, antessala do golpe de Estado, é no mínimo colaboracionista. Desculpem se estou monotemático, se retomo a última coluna. Mas a culpa não é minha, é da História, que no Brasil se repete como chanchada e, ao mesmo tempo, como tragédia.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).

Matéria publicada na edição impressa #49 em setembro de 2021.