Crítica Cultural,

Joan Didion vê ‘Greg news’

A autora de ‘O álbum branco’ advertia, já nos anos 60, que jornalismo sem posicionamento é pura falsidade

26maio2022

Em 1968, Joan Didion só lia, além do Wall Street Journal, publicações como Los Angeles Free Press, Los Angeles Open City e East Village Other — todas elas há muito desaparecidas depois de engrossar o caldo da imprensa alternativa da época. Em sua caretice, o octogenário jornalão não trazia exatamente algo que lhe interessasse, mas para ela era o único do mainstream a deixar claro o que pensava, poupando-a de uma sensação que me é muito familiar na leitura de boa parte do que se publica hoje por aqui, sobretudo entre os terceira viers: “uma profunda convicção física de que o oxigênio foi cortado de meu tecido cerebral”.

“Eu realmente prezo a objetividade”, diz Didion, “mas não vejo como se possa chegar a ela se o leitor não está ciente do viés particular de quem escreve.” O que se quer vender como credibilidade é, para ela, um arranjo dos códigos que regem o jornalismo convencional: “No melhor da imprensa tradicional há na verdade atitudes não ditas, e o fato de que essas atitudes continuem não ditas e não sejam admitidas se interpõe entre a página e o leitor como o odor que emana de um pântano”. A seus olhos, a neutralidade da anedota tem um sentido bem preciso: “Quem pretende não ter nenhum viés compromete todo o seu trabalho com uma espécie de falsidade”.

O que dizer

Publicado no ano passado em Let Me Tell You What I Mean [Deixa eu te dizer o que quero dizer], ainda sem tradução em português, que reúne doze escritos inéditos em livro, o ensaio “Alicia e a imprensa underground” traz a marca de sua época e a meu ver só tem a ganhar por ser “datado”. Há pouca dúvida de que nesses 54 anos o mundo perdeu mais do que ganhou no embate de ideias como um todo.

‘Quem pretende não ter nenhum viés compromete todo seu trabalho com uma espécie de falsidade’

Na política em particular, a noção de que o debate deve ser norteado menos pela dissidência do que por consensos fajutos só fez acentuar dissimetrias históricas. Dissimetrias que hoje, felizmente, provocam variados levantes em defesa de maior representatividade, ou seja, de um universo cada vez mais amplo de pessoas “com viés”.

Há tempos uma situação não é tão exemplar dessa miséria quanto o encontro de Gregorio Duvivier com Ciro Gomes na live semanal que é parte da campanha à Presidência do candidato do Partido Democrático Trabalhista (PDT). Demonstrando paciência tibetana, Duvivier protagonizou um momento distópico, em que as críticas que fez ao candidato em seu próprio programa (destaques necessários) tiveram de ser debatidas, ao vivo, com o criticado. Talvez a boa vontade de quem apoiou Ciro em 2018 o tenha levado a topar uma situação dessas, na qual foi questionado inclusive por ter declarado apoio a outro candidato — o que tem todo o direito de fazer.

Gregorio Duvivier não é, obviamente, candidato a nada. Que minions de todas as extrações o xinguem e o barbarizem nas redes é atestado paradoxal da qualidade de seu programa, a que se pode e deve criticar por motivos vários, menos pela falta de posicionamento. Furioso, Ciro não se contentou em gravar um vídeo destemperado de react ao Greg news (HBO) e pediu a conversa, cujo tom alterado surpreendeu a um total de zero pessoa.

As conhecidas extravagâncias de interpretação de texto, raiz voluntária ou não de muita lacração nas redes, parecem ter se agravado em uma exótica interpretação de títulos. Qual seria, segundo qualquer padrão, o grau de ambiguidade de um programa batizado Greg news e apresentado por alguém chamado Gregorio? Haveria, ainda que remotamente, alguma possibilidade de as notícias ali comentadas terem ótica diferente da de seu protagonista?

Qual seria o grau de ambiguidade de um programa batizado ‘Greg News’ e apresentado por alguém chamado Gregório?

Muita gente que é viciada em códigos do não dito parece ter bugado diante de um programa de humor e opinião que (surpresa!) combinou de forma explícita humor e… opinião.

Precisão

Quando, a partir dos anos 80, começou a cobrir política estimulada por Robert Silvers, editor da New York Review of Books, Didion nem sequer sabia o nome de gente importante da área. Talvez se lembrasse do próprio texto, aquele de 1968: “Os jornalistas mais admirados não são mais adversários, mas confidentes, parceiros; o ideal é ser conselheiro de presidentes (…) e depois, com o peso da responsabilidade, preencher seus relatórios codificados”. Ou seja, nada diferente do que lemos, vemos e ouvimos amplamente no Brasil de 2022.

A noção de que o debate deve ser norteado menos pela dissidência do que por consensos fajutos só fez acentuar dissimetrias históricas

Gosto de imaginar que Joan Didion daria boas gargalhadas vendo Greg news. Gregorio Duvivier é como Alicia, protagonista do ensaio de Didion, uma jovem que não tem pretensão de imparcialidade, mas que, quando escreve, diz sempre o que quer. E o faz com rara precisão. 

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).