Paulo Roberto Pires
Crítica cultural
As palavras e o Coiso
Foi preciso uma pandemia para que se adjetivasse o Mito da forma correta
23jul2020Das inumeráveis crises produzidas pelo bestiário no poder, a crise da linguagem é das mais insidiosas. Não são poucos os escribas, profissionais e amadores, que em algum momento se queixam, em jornais ou redes sociais, de que lhes escapam as palavras exatas para expressar o inexato que suscita a Era Cavalão.
O desastre começa pela dificuldade de nomear o próprio. Coiso, Bozo, Bolsozilla, Biroliro, Bostonazi, Bolsorabo, Bozonaro, Bostonaro, Bolsonero, Coronaro, Pandemito: essas e outras variantes são resultado de um vale-tudo para não chamar a criatura pelo nome, como se invocá-la fizesse materializar o Mal. O próprio, aliás, parece ter sérias dificuldades onomásticas: prefere números para referir-se àqueles a quem transmitiu o legado de sua miséria.
Quando se perde a linguagem, perde-se o sentido de intervenção no mundo – e, com ele, a política de verdade, a que provoca mais desentendimento do que consenso, a que altera os ânimos antes de aplacá-los. Sem impertinência não se enfrenta impostura.
Há quem evite chamar o Coiso pelo nome para supostamente silenciá-lo – defesa um tanto infantil, mas defensável. O pior são os acometidos por uma versão Curupira da síndrome de Estocolmo, que vira e mexe, quando a situação se agrava, saem em campo contra o uso das “palavras fortes”.
Fascista
Nas vésperas do segundo turno das eleições, era virtualmente proibido referir-se ao #Elenão como fascista – e até como “extrema direita”. Por algum fenômeno que ainda há de se explicar, considerava-se aceitável e até rotineira a plataforma de violência e ódio hoje executada pelo Capitão Corona & seus Acepipes.
(Mais sensibilidade teve a Polícia Federal, que perto da votação confiscou faixas dos Antifa estendidas numa universidade por alegado crime eleitoral – até para o Estado brasileiro estava claro que ser antifascista era votar no oponente do candidato F.)
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Paulo Roberto Pires
De lá para cá, ouviu-se de tudo. Numa passada de pano, a primeira vítima é a etimologia. E tome de se investigar a origem do termo “fascismo”, de citar códex obscuros para mostrar como seria impróprio referir-se assim aos amarra-cachorro que se preparavam para nos demolir.
Foi preciso uma pandemia – e uma forcinha da imprensa de todo o mundo – para que se adjetivasse o Mito da forma correta. E aí, qual bolcheviques de cartum, os conservadores de ontem passaram a berrar: fascista! Alguns, os mais espertos, transformaram a palavrinha antes maldita num bom negócio: usá-la dá like e audiência, vende livro e aparenta rigor.
Numa economia intelectual debilitada, devemos, no entanto, proteger os mais frágeis: os camelôs da moderação precisam sustentar suas famílias. É compreensível que, como aqueles que aparecem não se sabe de onde vendendo guarda-chuva nas primeiras gotas de um temporal, os mascates da moderação estejam de prontidão quando se começa a falar grosso em “genocídio”.
Já que limpar a barra do fascismo fez encalhar um estoque de eufemismo, os camelôs estão se abastecendo como podem para minimizar as práticas genocidas. Enquanto morre-se aos magotes nas florestas e nas periferias, os camelôs, como bons intelectuais informais que são, distribuem cloroquinas conceituais.
Quando forem autorizados a falar em genocídio, depois de sancionados pela imprensa estrangeira e por pilhas de cadáveres, escreverão telas e mais telas explicando a lógica do extermínio. Ninguém mais satisfeito com isso do que Aquele Que Não Se Diz o Nome.
A turma que é patologicamente a favor pode aproveitar para saudar o chefe do Planalto por um de seus poucos êxitos: ao destruir o sentido de palavras e nomes, destruiu coisas, pessoas e partes importantes do Bananão. Nos levando inclusive a buscar alternativas (obrigado, Ivan Lessa) para nomear esse torrão onde nos tocou viver e, cada vez mais rápido, morrer.
O colunista escreve quinzenalmente no site da revista dos livros.
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