Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

Aldir, carícia e bofetada

Foi entre o sublime e o grotesco que Aldir Blanc, vítima da Covid-19, encontrou e afinou sua voz única

04maio2020

“Eu leio o Ulisses e sou capaz de dar com ele nos teus cornos.” Assim falou Aldir Blanc, o Zaratustra da Muda, direto do coração da Tijuca profunda, Rio de Janeiro. 

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Alto modernismo e baixíssimo bandalhismo, carícia e bofetada conviviam em suas palavras porque foi assim, entre o sublime e o grotesco, que encontrou e afinou sua voz única, original. Era parte de uma linhagem de desconfiados do que reluz numa cidade e numa cultura. Via o Rio de Janeiro idealizado e oficial a partir da sujeira e das arestas de seus subúrbios, como o fizeram antes Lima Barreto, Noel Rosa, Nelson Rodrigues e Marques Rebelo.

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Quando o assunto era literatura, gostava de temperar com samba, com anedotas. Quando contava um caso de botequim ou cantava, vira e mexe mandava uma referência que nada tinha a ver com aquele mundo. Aldir Blanc não era, não é e jamais será para principiantes.

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Consta que um dia foi apresentado a Ron Carter depois de um show no Rio. Era tímido e praticamente o arrastaram até o baixista, que estava fascinado em conhecê-lo. Carter, que é um homem altíssimo como Aldir, o abraçou e abriu um sorrisão. Mas ninguém conseguiu traduzir para ele a admiração do compositor — que apesar de ler Robert Frost no original não falava uma palavra de inglês. “Ô Ron, essa perereca aí tu mandou fazer no Tupiara”, mandou ele, numa associação improvável entre o sideman de Miles Davis e o antológico protético da Tijuca.

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Era fissurado em jazz e romance policial. A conversa com Ron Carter me contaram. Uma outra, com Manuel Vásquez Montalbán, eu vi. Na verdade, armei para que ele encontrasse, na confusão de uma Bienal do Livro do Rio, o criador de Pepe Carvalho, detetive intelectual que queimava livros. Aldir deveria entrevistá-lo para a No.com, revista eletrônica em que era um dos editores e onde ele mantinha uma coluna. Estava nervosíssimo. Levou as perguntas num papel todo amarfanhado em que as lia para um perplexo Montalbán, que sabia muito bem com quem falava, compositor de músicas que ouvia e de que gostava.    

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Aldir não soube da morte de Luiz Alfredo Garcia-Roza, pois já estava internado. Era fã das aventuras do delegado Espinosa. Durante anos encheu cadernos com o que seria um romance policial ambientado no Rio. Gostava especialmente de falar sobre um capítulo gratuito, sem qualquer importância para a trama, destinado a provar que o Grajaú, bairro de perfil conservador da zona norte carioca, era o lugar mais escroto da cidade. Em “Querido diário”, já havia estabelecida a comparação irretocável: “Mais fora de esquadro do que esquerdista no Grajaú”. 

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O escritório de seu apartamento é um vale entre cordilheiras de livros. Nos anos 1990 era normal que saideiras intermináveis fossem culminadas com arremesso de alguns volumes. Ele olhava o parceiro de noitada, pensava numa afinidade com a biblioteca e o presenteado que tivesse bom reflexo. Só estou aqui para contar essa história por ter amparado um calhamaço com a correspondência de Philip Larkin.

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“Teu pai e mãe fodem contigo./ Que não o queiram, tanto faz./ Legam-te cada podre antigo,/ além de uns novos, especiais”, diz um dos poemas mais conhecidos de Larkin,  na tradução de Nelson Ascher. Aldir poderia ter escrito algo parecido, mas talvez fosse demasiado óbvio: o que escreveu, a sério ou na galhofa, era um inventário dos podres de todos nós — dos antigos e dos novos, especiais.

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Aldir Blanc era pouquíssimo cioso de Aldir Blanc. Não simulava a modéstia que deveras tinha. E, se nunca poderá ser descrito como “humilde”, jamais teve qualquer empáfia. Orgulhava-se de seu trabalho e do reconhecimento e carinho dos admiradores que hoje inundam as redes sociais. Tudo, sempre, com inquebrantável discrição, como mandam códigos de elegância há muito perdidos.

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Viveu o Brasil dos últimos anos com a tragédia que de fato é. Como ele mesmo contava, somatizava até o noticiário. Nas vésperas de funesta eleição de 2018, estava numa tristeza daquelas. O que fazer com o amor por um país, por uma cidade, se um fascista chegará ao poder pelo voto? E assim as vítimas elegeram o algoz.

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Me esforço para acreditar que a dor, a dor de sua morte e a das mortes de milhares de brasileiros, não há de ser em vão. Mas confesso que quando vejo a tal Esperança, de sombrinha e o escambau, andando na corda bamba, tenho mesmo é vontade de dar com um volume de Rua dos artistas nos cornos dela. Desculpem qualquer coisa.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).