Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

A raiva contra o ódio

Audre Lorde lembrava que a luta política não só não deveria prescindir da raiva como se apropriar dela

14maio2020

Se você não termina a leitura do noticiário com raiva é porque morreu e não sabe. Há a hipótese de, não sendo o Paulo Cintura, você ser o FHC e ainda estar pensando que talvez, quem sabe, tenhamos passado de algum limite. Resta ainda a opção de que você seja o tipo de comentarista político que desde 2018 não escreve uma linha sem um paninho na mão, faxineiro da barbárie.

Com essas possíveis exceções, a raiva é a regra de quem não foi lobotomizado no Brasil de 2020.

O manual do imobilismo político manda, no entanto, que qual freirinhas sorridentes, fazendo piquenique e tocando violão, afastemos de nossos corações e mentes sentimentos tidos como negativos ou pouco nobres. Mas veja os inquilinos do Planalto e seus currículos, uma súmula do pior da humanidade. Não, raiva não é nada de que se possa envergonhar diante de autoritarismo, truculência, ignorância, ressentimento, preconceito, racismo, misoginia, homofobia, fundamentalismo religioso, clientelismo e violência, muita violência.

No Brasil de hoje, raiva é legítima defesa.

Audre Lorde, poeta e feminista, lembrava que a luta política não só não deveria prescindir da raiva como se apropriar dela. “Minha raiva de mulher negra”, escreveu ela em “Olho no olho”, belíssimo ensaio de 1983, “é um lago de lava dentro de mim”. As excruciantes humilhações impostas pelo racismo, a violência da discriminação aberta ou velada, a pequena ou a quase imperceptível agressão são os fermentos dessa raiva, um sentimento que pode tangenciar o ódio mas que dele se diferencia em essência. Lorde escreve, aliás, para separar uma coisa da outra.

A raiva, define ela, é uma “emoção de desprazer que pode ser excessiva ou inapropriada, mas não necessariamente prejudicial”. O ódio, sempre destrutivo, Lorde descreve como um “hábito emocional ou disposição mental em que a aversão se une ao desejo doentio”. Quem tem ódio quer aniquilar um inimigo que criou por pura abominação racial, divergência política ou oposição moral.  Já a raiva nasce como reação, como defesa ao variado cardápio de opressão do mundo. A raiva é, admite a ativista, uma “forma incompleta de conhecimento humano” que, reprimida ou mal direcionada, pode simplesmente demolir. Se devidamente cultivada, é um combustível essencial da sublevação.

Em parâmetros humanos, a raiva é uma reação rigorosamente saudável quando nosso  Führer de chanchada reage com um “e daí?” às mortes que se acumulam na pandemia. Quando facínoras são homenageados como heróis. Quando um empresário inescrupuloso lamenta a “morte” de CNPJs. Quando a pastora fundamentalista, que chegou a ser defendida por jornalistas, garante que o desprezo pela população de rua a imuniza da Covid-19. Quando a Noivinha do Brasil Fascista sente saudades de cantar “Pra frente Brasil” enquanto seus amigos verde-oliva penduravam opositores num pau de arara. Quando o investidor playboy respira aliviado de o pior já ter passado “na classe média alta”.  Quando bestas, com traços residuais de humanidade, agridem profissionais de saúde. Quando famílias desesperadas arrombam caixões, temerosas de que os óbitos sejam fraudados como garantiam as fake news espalhadas por uma parlamentar. Quando um juiz obsequioso denuncia como inaceitável o que há muito ele aceita e apoia.

Enquanto as ruas nos são vedadas pelo bom senso e por um sentido de autopreservação, restam na imprensa e mesmo no lodo das redes sociais as formas de pressionar, com veemência, quem tem representatividade imediata e direta. Não sendo você Paulo Cintura, FHC ou lambe-botas, é preciso potencializar em palavras, em boicotes, mesmo em panelaços, a recusa reiterada, incansável e impiedosa do que aí está. Só a raiva dos ofendidos, dos vilipendiados e agredidos pode nos manter íntegros no ambiente de ódio imposto pela manada fascista.

Esta coluna é dedicada a Sérgio Sant’Anna, que sucumbiu ao Brasil bolsonarista em 10 de maio de 2020.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).