Paulo Roberto Pires
Crítica cultural
A mentira acima de todos
O que é comprovável por razão, fatos ou ciência pode ser potencialmente falso quando se mostra inconveniente para líderes como Jair Bolsonaro
29abr2020 | Edição #33 mai.2020“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” é a epígrafe do capítulo mais deprimente de nossa história nas últimas décadas. Se o bolsonarismo ainda não rivaliza com a ditadura militar em número de assassinados pelo Estado, com ela se ombreia no projeto de controle total do poder, na fundadora aversão à liberdade, na disseminação do preconceito, na consagração do moralismo hipócrita. A combinação de nacionalismo tacanho e fundamentalismo religioso propagada por retórica violenta não é, no entanto, um resultado único da associação entre um político do baixo clero, sua família disfuncional, um economista sem expressão, um juiz maleável e um astrólogo de quermesse. Originalidade, afinal, não é mesmo o forte dessa gente, que atualiza no Brasil de hoje estratégias historicamente consagradas pelo fascismo.
Ler em plena pandemia, no isolamento total, A Brief History of Fascist Lies (“Uma breve história das mentiras fascistas”, ainda sem edição brasileira) ilumina essas origens e, como queria Walter Benjamin, organiza o pessimismo. O breve livro de Federico Filchenstein, historiador argentino que vive e ensina nos Estados Unidos, conecta Donald Trump, Jair Bolsonaro, Viktor Orbán e que tais às suas raízes nos movimentos fascistas europeus e latino-americanos do século 20 para mostrar como essas criaturas nocivas ao que é humano caminham no fio da navalha entre um populismo de extrema direita e a efetiva e sistemática imposição de um regime de força e aniquilação. Na melhor das hipóteses, podem não passar de “leões herbívoros” — imagem que, lembra Filchenstein, Juan Domingo Perón usava para proclamar sua suposta moderação.
“Ainda não está claro o quão longe Bolsonaro vai trilhar o caminho do populismo ao fascismo”, escreve o autor, que concluiu o livro no ano passado e, portanto, não viu a contribuição da Covid-19 para o metabolismo político do nosso Führer de chanchada. Desde março, quando foi lançada a publicação da California University Press, o Mito (sic) já tinha avançado muitas casas no tabuleiro da autocracia: escondeu resultados de seus exames depois de voltar dos EUA com uma comitiva contaminada, incinerou em praça pública um ministro da Saúde pouco brilhante mas sem traços aparentes de psicopatia, deixou claro que os velhos podem morrer, conclamou os mais novos (e principalmente os mais pobres) às ruas, tossiu em cima deles e os abraçou, atacou o que vê como a propaganda socialista da Rede Globo, inventou um remédio redentor para a doença e, em seu ponto mais baixo, discursou em manifestação que pedia golpe militar e novo AI-5.
Se numa guerra a primeira vítima é a verdade, na política fascista o fundamento inegociável é a mentira
A indignação, essa paixão inútil, sacudiu redes sociais: almas simples confessaram “não encontrar palavras” para definir os atos do presidente; legalistas denunciaram, contundentes como um FHC, que o capitão “passou dos limites”. Incontáveis outros replicaram, em tuítes e brados acompanhados por panelas, a palavra de ordem mais inócua dos últimos anos, o “fora” alguma coisa. Há a hipótese de que todo esse espectro de vozes, da ingenuidade à hipocrisia, suponha que estejamos vivendo uma crise política contra um pano de fundo de razoabilidade. Erro rude. Se, como ensina o clichê, numa guerra a primeira vítima é a verdade, na política fascista o fundamento inegociável é a mentira.
Vamos combinar que nem Irmã Dulce levaria a sério o Evangelho de João segundo Jair. Sempre que ouço o Grande Líder repetir “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” tenho certeza do contrário. Ainda que a mentira, como observa Filchenstein, seja sempre associada ao jogo político, à malversação de poder e recursos, no caso do fascismo ela ocupa o lugar de fundamento, da substância de uma das “verdades absolutas” que se propagam. A inferioridade de negros e indígenas, por exemplo, supostamente “comprovada” por “evidências”, não é uma mentira no sentido clássico — o de um artifício que busca engabelar o cidadão —, mas o princípio básico de um sistema de valores racistas erguido para solapar a realidade verificável. Na Alemanha de Hitler e nos EUA de Trump, na Itália de Mussolini e na Hungria de Orbán, o que é comprovável e demonstrável por razão, fatos ou ciência pode ser potencialmente falso quando se mostra inconveniente para a estratégia de perpetuação dos líderes.
Numa democracia, o líder é o representante dos interesses e dos anseios de seus eleitores. No fascismo, o que se põe em dúvida é a própria ideia de representatividade: o líder não é o titular de um mandato transitório, mas ele mesmo a encarnação da verdade, uma verdade mítica de bem comum, de justiça e de moral. Não há possibilidade de questionamento porque, ao se proclamar como a materialização do “bem”, ele lança à vala comum do “mal” ideias, pessoas e instituições que dele divirjam ou que nele denunciem a falsificação de raiz. “Eu sou a Constituição”, bradou nosso Luís 14 de carro alegórico, demonstrando e resumindo, com notável poder de síntese, todo um capítulo de Filchenstein. Não por um acaso, cidadãos agressivos, muitas vezes armados, ostensivamente racistas e homofóbicos, enchem a boca para dizer: “Somos pessoas de bem”.
Outras colunas de
Paulo Roberto Pires
No regime da mentira, em que as fake news são os cães de guarda mais estridentes, a falsificação essencial é a do passado. “Se a história era uma narrativa, o fascismo era um princípio”, escreve o autor sobre procedimentos comuns a regimes totalitários do passado. “A tarefa dos fascistas era aplicar este princípio às circunstâncias do momento. Eles queriam impor o fascismo à narrativa histórica.” Numa demonstração hiperbólica desse princípio, o bolsonarismo sustenta que não existiu ditadura militar e que um torturador, cujo nome me recuso a declinar, deve ser considerado herói nacional — teses firmemente encampadas por hordas de seguidores que, talvez sem perceber, a cada dia abrem mão da independência de reflexão e da capacidade de avaliar criticamente seu passado e seu entorno imediato. E muito menos de especular sobre o que pode esperá-los em poucos anos.
O roteiro histórico do fascismo é objetivo e conciso no que diz respeito às formas de combater seus inimigos: discriminação, exclusão e eliminação. Menosprezar a dinâmica de destruição que leva de um momento para outro foi precisamente o que fizeram algumas de suas vítimas históricas — e, ainda assim, comentaristas e intelectuais brasileiros vêm minimizando, desde a última eleição, a periculosidade de ideias que estão, de fato, corroendo por dentro o Estado de direito e que hoje irrigam cada manifestação contra a democracia ou o isolamento social. Filchenstein cita o Adorno de Minima moralia e o repito aqui no fragmento “Mentira de pernas longas” (em tradução de Gabriel Cohn): “o seu [das ações nazistas] caráter inverossímil tornava fácil não crer naquilo que de modo algum se queria acreditar, e nisto ao mesmo tempo se capitulava diante dele”.
Psicanálise
Os inimigos de um líder fascista variam, como se pode ler nos jornais de hoje, de acordo com seus interesses em determinado momento. Atravessa a história, no entanto, qualquer opositor que se pode designar pelo genérico “comunista” e qualquer tipo de formulação intelectual que bote em dúvida ideias de unidade — da pátria ao corpo. Filchenstein dedica um capítulo a examinar o quanto a psicanálise representou uma ameaça para os movimentos fascistas do entre-guerras até o nazismo. E poderíamos prolongar a analogia para o que é demonizado como “ideologia de gênero” por um heterogêneo grupo de pessoas que não leem sequer uma bula de cloroquina — o que dirá um parágrafo de Judith Butler. No governo dos homens brancos de revólver a tiracolo, proclamar a identidade sexual como construção é crime de lesa-macho a ser punido com o silenciamento, da discriminação à eliminação.
A Brief History of Fascist Lies é altamente recomendável para os adeptos da exótica teoria de equivalência entre bolsonarismo e petismo, ponto de partida de galopes argumentativos cuja apoteose foi a formulação da “escolha difícil” no segundo turno das eleições de 2018. Autor de um outro estudo sobre o tema, Do fascismo ao populismo na história (Edições 70), Filchenstein lembra que tanto o populismo como o fascismo se fundamenta na trindade “líder, nação e povo”, sendo a diferença nada desprezível entre os dois o peso e a importância das eleições nessa equação. O líder populista necessita das eleições para referendar seu protagonismo; o fascista utiliza-as para chegar ao poder e, imediatamente, apontar suas deficiências, denunciar sua falibilidade e minar sua legitimidade. Uma vez empossado pelo trâmite democrático, o líder fascista não quer ouvir falar de voto e fará o que for preciso para que a próxima consulta às urnas aconteça sob algum tipo de coerção ou, no melhor dos mundos para ele, não aconteça.
Prudente, o historiador sustenta que Bolsonaro “situa-se claramente na fronteira entre a ditadura fascista e a forma democrática de populismo”, mas admite que, ao tentar apagar da história a ditadura ou defender que o nazismo foi um movimento de esquerda, o mentor cloroquiner “se parece muito pouco com populistas clássicos como Perón e muito mais com Hitler e Mussolini”. A questão decisiva é que, uma vez instilada no sistema político, a mentira como fundamento de arbitrariedade ganha força e desnorteia o mais esclarecido dos cidadãos. Quando a fronteira entre invenção e evidência é reiteradamente negada, lembra Adorno, o engajamento em qualquer forma de conhecimento passa a ser “um trabalho de Sísifo”.
Nesse sentido a pandemia é a tempestade perfeita para o bolsonarismo — e não apenas porque, é óbvio, facilita a adoção de medidas de exceção a pretexto de combater a doença. Oprimida pelo medo, sentimento que João Guimarães Rosa tão bem definiu como “a extrema ignorância em momento muito agudo”, a população em geral, sem exceção, vê depreciadas suas defesas cognitivas. E, como notou Vladimir Safatle em artigo recente para o jornal El País, o presidente que come sonho na padaria e limpa o nariz em público pode até perder o apoio de camadas mais esclarecidas, mas mantém-se estável ao conquistar “identificação profunda e aguerrida” entre as classes mais populares, configurando assim um país “com 30% de camisas-negras dispostos a tudo”.
Sim, esta coluna e o livro de Federico Filchenstein podem ser postos na conta do alarmismo pelos negacionistas da análise política, aqueles que há mais de dois anos minimizam o potencial destrutivo de um político violento, racista, movido por ódio e amparado pelo anti-intelectualismo. A eles, recomendo que relaxem na posição de avestruz que lhes cai tão bem: vai ver, o bolsonarismo não passa de uma gripezinha.
Matéria publicada na edição impressa #33 mai.2020 em abril de 2020.
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