Laut, Liberdade e Autoritarismo,

Atormentado

Livro sobre o primeiro ano de Jair Bolsonaro diz muito sobre o presidente e o seu entorno

25mar2020 | Edição #32 abr.2020

Tormenta, o livro da jornalista Thaís Oyama sobre o primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro, diz muito sobre o presidente e seu entorno, e o faz por mais de uma via. Indiretamente, a reação de Bolsonaro à publicação diz muito sobre ele: “A nossa imprensa tem medo da verdade. Deturpam o tempo todo. Mentem descaradamente. Trabalham contra a democracia”.

Bolsonaro não argumenta, não fundamenta, não refuta; não contradiz com evidências e não oferece provas quando acusa. No lugar de apontar onde o livro estaria mentindo, escolheu tergiversar repetindo bordões genéricos e agressivos contra a imprensa que não o bajula. Terminou tratando a autora como “essa japonesa, que eu não sei o que faz no Brasil”. Não foi seu primeiro desrespeito à comunidade nipônica: antes como piada, depois como ofensa. Oyama é tão brasileira como Bolsonaro, que também descende de estrangeiros, e apenas escreveu um livro que narra fatos incômodos ao presidente.

Tormenta diz muito, óbvio, por aquilo que reporta. O livro dá conjunto a muitas histórias já anteriormente publicadas sobre fatos e protagonistas do primeiro ano do governo, aos quais agrega informações exclusivamente obtidas por sua apuração. Oyama encadeia seus relatos para dar coerência e sentido a muito do que já sabíamos, mas que foi se perdendo da crítica e da memória diante de sucessivos fatos espantosos, que roubavam atenção uns dos outros.

Como livro-reportagem, Tormenta deve ser julgado não apenas pela qualidade da narrativa, que sobra à experiente autora, mas pelo rigor daquilo que apurou. Ela mesclou histórias de conhecimento público com depoimentos de bastidores, dados seja por quem conhece Bolsonaro há muito tempo, seja por quem se aproximou dele apenas quando seu projeto de candidatura começava a deslanchar. Algo digno de nota: embora o retrato final sugerido pela obra não seja propriamente laudatório a Bolsonaro, Thaís Oyama não deixou de conversar com gente amiga e entusiasta do presidente nem privou o leitor do direito de conhecer a opinião de Bolsonaro dada por seus aliados.

Mas a autora não deixou de imprimir sua marca ao escolher as crises e intrigas como momentos que mereciam destaque na história que escolheu contar. Nada a objetar nessa estratégia, não só porque essa é uma luz indiscutivelmente pertinente de se jogar sobre o governo Bolsonaro, como também porque Oyama é explícita e transparente em enunciar sua opção.

Personagens e momentos

A história é contada por uma conjugação de personagens e momentos. Eles mostram a interpretação da autora sobre quem e o que conferem singularidade ao governo. Há amigos de longa data (como Alberto Fraga), aliados episódicos (como Bebbiano, Bivar e o psl), o núcleo militar (com destaque para o general Heleno); e há, claro, os filhos, com destaque para Zero Dois e sua performance nas redes, nos bastidores do governo e nas relações familiares.

Quanto aos momentos, Oyama faz um recorte amplo, que vai além dos primeiros 365 dias de Bolsonaro no cargo: sua reportagem começa com o momento em que a cogitação da candidatura presidencial era um delírio que nem os amigos mais sinceros levavam a sério; passa pelas tumultuadas escolhas do partido da candidatura e do vice na chapa, que deixaram muitos de mãos abanando; pela facada em Juiz de Fora; pelas eleições e pela posse, para finalmente chegar ao exercício do poder.

Faz bem à cultura pública o tipo de livro que se propõe a apurar, interpretar e reportar os bastidores do poder político. É um nicho literário bem desenvolvido em outros países: não são poucos os livros análogos sobre cada presidente dos Estados Unidos, ou mesmo sobre cada eleição disputada. É informação de valor noticioso e há inegável interesse público em vê-la publicada. Invariavelmente, personagens expostos responderão como respondeu Bolsonaro, atormentado. Fiquemos com Louis Brandeis, lendário juiz da Suprema Corte dos EUA: “A luz do sol é o melhor desinfetante”.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Rafael Mafei Rabelo Queiroz

Co-organizou História oral do Supremo: Francisco Rezek (FGV Direito Rio).

Matéria publicada na edição impressa #32 abr.2020 em março de 2020.