Paulo Roberto Pires
Crítica cultural
A malvada
Impermeável à perfumaria empática e às boas intenções, Janet Malcolm levou o jornalismo a seus limites éticos e estéticos
18jun2021 | Edição #47Como uma Blanche DuBois perversa e autoirônica, Janet Malcolm dizia que jornalistas “dependem da bondade de estranhos”, daqueles que se oferecem como personagens de histórias sobre as quais não têm o menor controle. Em mais de cinco décadas de profissão, Malcolm se beneficiou mesmo foi da confiança de incautos, famosa pelo tratamento implacável dispensado aos que retratou. Como uma antítese do homem célebre machadiano, morreu ontem, aos 86 anos, mal com os outros e, provavelmente, bem consigo mesmo.
Repórter com instinto de ensaísta, que navegava com a mesma desenvoltura entre ideias e pessoas, deixou uma invenção inimitável chamada Janet Malcolm. “O ‘eu’ do jornalismo”, escreveu ela em “Reflexões sobre autobiografia de uma autobiografia abandonada”, “é uma espécie de narrador ultraconfiável e uma pessoa incrivelmente racional e desinteressada, cuja relação com o assunto com muita frequência se assemelha à relação de um juiz que pronuncia a sentença de um réu culpado”. Nos quatro densos parágrafos, lamentava, em 2010, ser tarde demais para “mudar de pele” e escrutinar, por escrito, a própria memória. Concluiu então que se tornara jornalista “porque não queria se ver sozinha na sala”.
Malcolm optou por se aproximar do mundo dos que o habitam como uma adulta, que prefere a aresta à curva, a rispidez aos bons modos, o problema à solução
Malcolm sem dúvida precisava do mundo e, sobretudo, dos que o habitam, mas optou por se aproximar de um e de outros como uma adulta, que prefere a aresta à curva, a rispidez aos bons modos, o problema à solução. Impermeável à enjoativa perfumaria empática de nossos tempos, a ela interessava o assassino que processa um jornalista alegando traição, os abusos de biógrafos e dos guardiães dos biografados, a rinha de vaidades do mundo das artes. O “outro”, moeda-corrente no mercado das boas intenções, interessava a ela como um espelho partido e distorcido de si mesma — e do jornalismo em geral.
É possível — ainda que não recomendável — emular o olhar blasé de Joan Didion, o detalhismo obsessivo de Gay Talese ou as frases judiciosas de Susan Sontag. Mas escrever a la Malcolm ninguém quer, porque implica em cortar a própria carne, da provocação que celebrizou a primeira linha de O jornalista e o assassino — “qualquer jornalista que não seja demasiado obtuso ou cheio de si para perceber o que está acontecendo sabe que o que ele faz é moralmente indefensável” — ao último capítulo, melancólico, de A mulher calada, sobre Sylvia Plath e seus biógrafos. O fascínio pelas faltas alheias traduziu-se, em seus treze livros, numa incômoda confissão de seus próprios descaminhos: Janet Malcom era implacável com Janet Malcolm.
Jornalista implacável
Para mim, sua genialidade está em miudezas como “Profundidade de campo”, o perfil de Thomas Struth publicado em 2011 na The New Yorker e depois recolhido em 41 inícios falsos. No auge do prestígio crítico e mundano, o fotógrafo era um personagem ideal para a repórter, que por uma semana acompanhou-o em sua rotina na Alemanha. Da proximidade, nasceu uma conversa em que, afetado como as estrelas de cada estação, Struth dizia ter aprendido a proximidade entre Atget, o fotógrafo francês do século 19, e a obra de Proust. “Não entendo. O que Atget tem a ver com Proust?”, pergunta ela, num jantar. O diálogo tenso resulta num Malcolm-moment, aquele instante em que ela flagra o homem fora do personagem. No caso, confessando não ter lido Proust. Com a palavra, Mrs. Malcolm:
“Quando estávamos saindo do café, Struth disse: ‘Eu me sinto mal em relação a Proust e Atget’. Struth é um entrevistado sofisticado e experiente. Ele reconheceu no momento Proust-Atget um equivalente jornalístico de um dos ‘momentos decisivos’, quando o que o fotógrafo vê no visor salta para fora e diz ‘isto vai ser uma fotografia’. Eu emiti ruídos reconfortantes, mas sabia, e ele sabia, que a minha foto já estava a caminho da câmara escura do oportunismo jornalístico’.”
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Paulo Roberto Pires
A Beinecke Rare Book and Manuscript Library, biblioteca de Yale onde ela depositara seus papéis pessoais, realizou em 2019 uma exposição cujo título é um primor de síntese: “O tribunal, o divã e o arquivo: o jornalismo de Janet Malcolm”. Afinal, o que sempre esteve em questão para ela, das ótimas resenhas às grandes reportagens, era os riscos e limitações de quem vive para avaliar, inquirir e narrar. Ao analisar e expor uns e outras, acabou com um segredo de polichinelo: a paz possível entre entrevistado e entrevistador, entre testemunha e inquisidor, é uma paz armada — já que, mesmo mediados pela cordialidade, sempre estarão em lados opostos.
O que sempre esteve em questão para ela, das ótimas resenhas às grandes reportagens, era os riscos e limitações de quem vive para avaliar, inquirir e narrar
Em setembro, Malcolm publicou, na The New York Review of Books, seu último texto. “A second chance” seguia a pista autobiográfica que marcou suas colaborações finais para a revista literária americana e para a The New Yorker, seus endereços mais recorrentes. Narrava em detalhes como teve que ser treinada por um coach de atores para se portar adequadamente no tribunal quando processada por Jeffrey Masson — o psicanalista de Nos arquivos de Freud a acusou de inventar e deturpar trechos de entrevistas. Sua postura, arrogante, não vinha facilitando em nada a vida dos advogados de defesa que recorreram de uma sentença e terminariam por absolvê-la. Lembra ela, em saborosa autodepreciação: “eu era parte da cultura da New Yorker dos velhos tempos — a época de William Shawn como editor — quando o mundo lá fora, fora do clube maravilhoso em que nós, os poucos e privilegiados, vivíamos, existia apenas para ser desfrutado e educado por nós, mundo ao qual jamais nos curvaríamos em busca de ajuda, de que intercedesse por nós”.
No obituário do The New York Times, Katherine Q. Seeyle lembra uma recomendação de Robert Boynton, feita ainda nos anos 1990: “Em hipótese alguma coma diante de Janet Malcolm; ou mostre a ela seu apartamento; ou pique um tomate enquanto ela observa. Na verdade, o melhor é provavelmente nunca conceder-lhe uma entrevista, pois seu gesto menos nobre ou tique nervoso será registrado com precisão devastadora. É provável que você não fique satisfeito com o resultado; e talvez queria até processá-la”.
Num mundo de compadrios, não conheço melhor elogio para um jornalista. Janet Malcolm já está, há tempos, fazendo falta.
Matéria publicada na edição impressa #47 em maio de 2021.
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