
Crítica Cultural,
A folia pandêmica de 1919
Ainda confinado em casa em 2022, o colunista se refugia no primeiro furdunço depois da Gripe Espanhola
24fev2022 | Edição #54“Não adianta ficar Putin” saiu no sábado do pré-Carnaval. Convocado pelas redes sociais, o bloco desafiou a ômicron e a prefeitura do Rio de Janeiro. Foi parado pouco depois de ganhar a zona portuária pela indômita Guarda Municipal, encarregada de implementar o controle da pandemia à carioca: nos dias de Momo, a transmissão do vírus está restrita a festas particulares, inteiramente liberadas em ambientes fechados e, claro, pagas. Na rua, ao ar livre e de graça, a ordem é pau nos pândegos.
Frustraram-se assim as expectativas de que o Carnaval de 2022 reeditasse o de 1919, quando o furdunço teria alcançado proporções épicas. Atravessava-se então a ressaca de um ano de alguma forma parecido com o que vivemos -— assombrado por um conflito distante como o que se arma na Ucrânia e um vírus tão próximo quanto o Corona. O Brasil ainda vivia os últimos momentos da Primeira Guerra quando foi solapado, em setembro de 1918, pela Gripe Espanhola. Até novembro, só o Rio acumulava 15 mil mortos. Até o fim da pandemia, 66% dos brasileiros seriam infectados.
Como nos bons livros de história, volta do passado sem nostalgia, fazendo pensar em transformações culturais decisivas
No segundo Carnaval trancafiado, este colunista encontra um lenitivo — e uma oportunidade de escrever “lenitivo” — em De sonho e de desgraça: o Carnaval carioca de 1919 (Mórula). E, das profundas de seu miserável estado de espírito, folga em saber que a folia de então não foi essa orgia toda, ainda que tenha representado uma fundamental revanche sobre a morte. Revanche que merecíamos neste fevereiro, mas podemos adiar para outubro próximo, nas urnas, com benefícios mais duradouros do que uma prise de lança-perfume.
Resultado de mergulho nas profundezas abissais de jornais, revistas, literatura, teses universitárias e sem dispensar a necessária dose de galhofa, o livro de David Butter é uma festa, esfuziante, de documentos. Na contramão das cascatas bairristas que fazem a literatura saudosista sobre a cidade, Butter é jornalista que não separa imaginação da paixão pelo concreto — ou seja, nem se abala em criar hipérboles para uma cidade que desde sempre as tem incorporadas a seu cotidiano.
O que pegou
A gripe pegou feio o menino Mario Lago, de seis anos, e levou mãe e irmã do adolescente de dezesseis que seria conhecido como Carlos Cachaça. Imprimiu sua marca sinistra na memória dos irmãos Nelson Rodrigues e Mário Filho, que a ela se refeririam em crônica e romance. Vitimou personagens célebres como João Cantuária, craque do São Cristóvão, e Alice Cavalo-de-Pau, mítica cafetina.

“O Tanque”, carro alegórico do Clube dos Democráticos, na avenida Rio Branco, que marcava a introdução do veículo na recém-encerrada Primeira Guerra. (Careta, 8 de março de 1919/Reprodução)
A cidade tinha tudo para estar mergulhada em luto fechado, mas uma força vital a empurrava para a festa. Militar, juiz de luta romana, meganha, repórter de polícia e acima de tudo folião, o titânico Jamanta, enteado de Arthur Azevedo, foi um herói da Espanhola. Chegou a correr a cidade pilotando um bonde para recolher cadáveres insepultos. Em poucos meses, trocava o “cordão sanitário” pelo carnavalesco.
A cidade tinha tudo para estar mergulhada em luto fechado, mas uma força vital a empurrava para a festa
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Com a vantagem de não terem que enfrentar fascistas que patrocinavam o morticínio, os cariocas de então não deixaram um só minuto de pensar naquilo. A Festa da Penha de 1918, prévia religiosa da folia pagã, chegou até a ser adiada de outubro para dezembro. Mas em janeiro, observa Butter, a agenda carnavalesca “explodia” em clubes e sociedades. Coelho Neto anota que, naquele ano, o “gaiato amigo velho que é Momo” acolhia em suas hostes “filhas desoladas e viúvas inconsoláveis, confundindo-lhes as vestes lutuosas com as cores alegres dos trajes das outras mulheres”.
Brincando com a desgraça
A exemplo de nosso contemporâneo Putin, blocos efêmeros como o noticiário povoaram o pré-Carnaval sem medo de brincar com a desgraça. O Influenza Espanhola saiu em Nova Iguaçu e, motivados pela decisão de não reprovarem ninguém naquele ano, foram fundados o Exames por Decreto e o Bacharelandos de 1918. Dois grupos diferentes de gaiatos saíram com o estandarte Chá da Meia Noite — rezava a lenda que a Santa Casa de Misericórdia acelerava com a tal infusão a morte dos doentes graves. A venerável instituição foi, aliás, rebatizada como “Miséria e Corda” num bloco que corria as ruas de Madureira.
Desde então o poder público cumpre seu papelão. Em 1919, como em boa parte do século seguinte, banheiros para os foliões eram raros ou impraticáveis. Naquele ano as confeitarias foram obrigadas a abrir durante a festa, mas a um dado momento a falta d’água tornou impossível obter um copo limpo. Decidiu-se ainda fechar “casas de tolerância” e “casas de cômodo” numa tentativa, sabe-se lá com que objetivo, de arrefecer a libido da turma. Parece não ter dado muito certo, pois a partir de agosto as taxas de natalidade do Rio tiveram aumento significativo, numa geração que ficou conhecida como “filhos do Carnaval de 1919”.
Transformação do Carnaval
Butter dedica um grande capítulo a cada dia da festa, de sábado a terça, e assim expõe a dinâmica de um Carnaval marcado pelo início de um lento crepúsculo dos corsos e grandes sociedades, que davam a tônica dos “préstitos” europeizados da Avenida Rio Branco. Em torno da Praça Onze e da região conhecida como Pequena África, o samba começa a rugir e, nos anos seguintes, transformaria o Carnaval. E, de forma mais radical, o panorama da música popular.
Decidiu-se fechar “casas de tolerância” numa tentativa de arrefecer a libido da turma, mas a partir de agosto as taxas de natalidade do Rio tiveram aumento significativo
Como nos bons livros de história, ainda que sem pretensões a interpretações totalizantes, De sonho e de desgraça volta do passado sem nostalgia, fazendo pensar em transformações culturais decisivas, que dão complexidade ao raso revisionismo que se quer hoje fazer daqueles anos decisivos. A Milicianópolis de hoje já foi a Foliópolis de Vagalume, o “decano” dos cronistas carnavalescos. Mas, se a gente organizar direitinho, todo mundo brinca como há cem anos. Pelo menos a cada fevereiro.
Matéria publicada na edição impressa #54 em fevereiro de 2022.
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