Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

A coragem dos covardes

Defender o indefensável é audácia intelectual para os que constroem suas virtudes a partir de vícios alheios

14out2021 | Edição #50

O conservadorismo à brasileira constrói suas virtudes a partir do que entende como vícios alheios. De acordo com a sofisticação de suas referências, recorre de Stalin ao “identitarismo” para montar espantalhos na velhíssima tradição de demonizar a esquerda. Pusilanimidade, como se sabe, não é crime. Mas também compensa. 

O trololó da terceira via só magnifica o que acontece nos debates intelectuais. Do ponto de vista eleitoral, à falta do que propor como alternativa à barbárie bolsonarista e aos favoritos provisórios de 2022, isentões e militantes do Movimento dos Centristas Sem Bússola (MCSB) dedicam-se com afinco à produção de quimeras.

Tão nova quanto a bossa nova, a “nova direita” reúne o que há hoje de pior na vida pública brasileira: apoiou e apoia, às vezes fingindo que rejeita, o fascismo que é útil ao mercado

Menos Marx, mais Mises (Todavia), o excelente livro de Camila Rocha sobre a “nova direita”, explica como os adeptos da selvageria de mercado desde sempre fizeram da “esquerda” a inimiga certa das horas incertas. Tão nova quanto a bossa nova, essa direita reúne o que há hoje de pior na vida pública brasileira: apoiou e apoia, às vezes fingindo que rejeita, o fascismo que é útil ao mercado. 

Entendo que essa laia congregue empresários engajados em si mesmos — consciência de classe é isso aí. Lamento que mobilize cidadãos “comuns” devotados a teorias e práticas que, disseminados por think tanks, reafirmam a depreciação de suas vidas e, eventualmente, até sua extinção. E deploro que tenha o apoio de intelectuais e analistas em convenientes omissões.

Isentismo

Foi em 2016 que isentismo virou sinônimo de sagacidade. No suposto debate sobre a propriedade de chamar o golpe de golpe, procrastinava-se a questão central: era preciso ser inequivocamente contra ou a favor de desqualificados que abriram caminho para o Cavalão. E o intelectual adversativo, fascinado pela própria retórica, justificava a evasiva como sinal exterior de “independência” — um ativo que no mercado das ideias só vale pela prática, jamais por autodeclaração. 

O intelectual adversativo, fascinado pela própria retórica, justificava a evasiva como sinal exterior de “independência” — um ativo que no mercado das ideias só vale pela prática, jamais por autodeclaração

Daí chegamos à ideia, hoje popular, de que defender o indefensável é demonstração de audácia intelectual. Nessa lógica, distorcer a história para enxovalhar a luta antirracista é não apenas conveniente, mas desejável. Na sociologia de almanaque, isolamento social é prática de sanitaristas “de esquerda”, assim como aquecimento global é visão de mundo ideologizada.

Correndo por fora da lacração, numa pista passivo-agressiva, vem ainda os motoboys da Economist. Limpinhos, de terninho, não vociferam — apenas ironizam. Na melhor tradição do intelectual aduaneiro, terceirizam controvérsias. Quando se olham no espelho, querem-se ingleses. Ao afetarem o tédio da superioridade moral, escancaram o bovarismo que, assim como samba, a prontidão e outras bossas, é coisa nossa. 

Millôr Fernandes é, curiosamente, uma vítima contumaz dessa gente. Quando rebatidos, os valentões citam: “Jornalismo é oposição. O resto é armazém de secos e molhados”. A frase é perfeita, mas não se aplica a invertebrados. Quantos, dentre tantos destemidos que hoje a repetem, bateram de frente com os poderosos? Ou com seus patrões? Millôr, muitas vezes — custando-lhe relações e empregos.

Quantos entre os mesmos desassombrados, antibolsonaristas quando é fácil sê-lo, teriam a coragem de atacar com a mesma ferocidade um presidente com altas taxas de aprovação, sobretudo entre os mais ricos? Millôr massacrou Fernando Henrique Cardoso — e, antes dele, Sarney — na convicção de que crítica para valer se faz de baixo para cima, mirando sempre os fortes. Em sete décadas de trabalho, fechou muitas portas. Na mesma proporção que seus supostos admiradores são hoje craques em mantê-las abertas.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).

Matéria publicada na edição impressa #50 em agosto de 2021.