Autobibliografia,

Dostoiévski à beira-mar

Livros, assim como cogumelos mágicos, são alteradores de consciência. Pelo menos os livros que merecem ser lidos

25abr2025

Assim como o homem é o homem e suas circunstâncias, o leitor é o leitor e suas circunstâncias.

Pois este leitor ignorou as circunstâncias rumo a uma semana de vadiagem em Trancoso. Entre o protetor solar e as raquetes de frescobol, enfiou na mala um exemplar de Memórias do subsolo, de Fiódor Dostoiévski.

O título alertava para a incompatibilidade entre o lugar e o livro. Descer ao subterrâneo da existência enquanto se refestela ao nível do mar? Impossível.

Mas eu era jovem, e jovens são apegados a seus erros. Destemido, abri meu livro assim que encontrei um lugar ao sol. Primeira linha: “Sou um homem doente… Um homem mau. Um homem desagradável”.

Evitei conclusões precipitadas e prossegui.

Alheio ao barulhinho das ondas ao fundo, o narrador insistia em arruinar minhas férias que mal começavam: “Creio que sofro do fígado. Aliás, não entendo níquel da minha doença e não sei, ao certo, do que estou sofrendo”.

Força, pensei, enquanto atravessava as trinta páginas da primeira parte da novela. O ânimo, porém, desapareceu quando alcancei a segunda e última parte, cruelmente intitulada “A propósito da neve molhada”.

Como já tinha chegado até ali, insisti. “Naquele tempo, eu tinha apenas vinte e quatro anos”, retomava o narrador. Um plot twist emocional? Nada disso. “Minha vida já era, mesmo então, desordenada e solitária até a selvageria”. 

Reconheci, enfim, que Dostoiévski à beira-mar é como caipirinha de vodca — um erro.

Livros, assim como cogumelos mágicos, são alteradores de consciência. 

Pelo menos os livros que merecem ser lidos. Esses são capazes de transformar a maneira como percebemos o mundo. Daí a importância do set (o estado mental) e do setting (o espaço físico), tanto para a leitura como para a viagem e, estava claro agora, para a leitura de viagem. 

Harold Bloom e Timothy Leary me levaram até a mirrada biblioteca da pousada. Fui salvo por uma edição deveras arenosa de Tenda dos milagres. Jorge Amado não chegava a ser russo, mas quase — era comunista. Naquelas circunstâncias, bastava.

Troquei o borsch pela moqueca e devorei o livro em quatro dias.

Todo mês, o leitor Fernando Luna (@fluna) faz um exposed de seu relacionamento íntimo com um livro.

Quem escreveu esse texto

Fernando Luna

Jornalista, é colunista da Quatro Cinco Um da revista Gama.