
Autobibliografia,
‘O estranho’ era ‘O estrangeiro’
O pós-punk inglês a serviço da literatura francesa
29maio2025Foi Robert Smith, vocalista pós-punk do The Cure, quem me falou primeiro de O estrangeiro.
Mas não entendi nada.
Mesmo gastando a agulha da vitrola na faixa “Killing an Arab”, eu apenas repetia mentalmente a letra com meu protoinglês adolescente. Nem me dava conta de que citava um dos trechos mais conhecidos da literatura francesa — o assassinato de um árabe numa praia nos arredores de Argel.
Só uns anos depois, durante a explosão cambriana de referências que é o primeiro semestre de qualquer faculdade, liguei uma coisa à outra.
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Numa daquelas conversas nos intervalos das aulas, tão importantes para a formação como as próprias aulas, alguém soltou o nome de Albert Camus. Passei na biblioteca — uma espécie de internet de papel, porém sem memes — e dei de cara com ele. Literalmente.
Estampado na capa do seu romance de estreia, o retrato em branco e preto clicado por Henri Cartier-Bresson em 1947: o escritor Prêmio Nobel parecia mais um ator de filme noir. Gola do sobretudo levantada, cigarro aceso num canto da boca, cabelos penteados para trás, olhar desviando da câmera.
(Você sabe que um autor tem “star quality” quando sua foto ganha mais destaque no projeto gráfico do livro que o nome e o título.)
Como não bastasse, o primeiro parágrafo me fez assinar a ficha de empréstimo para terminar de ler em casa: “Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: ‘Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames’. Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem”.
Quatro capítulos depois, bateu a sensação de que já tinha escutado aquela história em algum lugar. O sol, o mar, a areia, o revólver… O árabe com seu “corpo inerte”, o silêncio excepcional na “praia onde havia sido feliz”…
Como um Champollion que dá uma topada na pedra de Roseta, botei o velho vinil para tocar e decifrei o óbvio: “Standing on a beach/ With a gun in my hand/ Staring at the sea/ Staring at the sand (…) I’m alive/ I’m dead/ I’m the stranger/ Killing an Arab”.
Absurdo: “The stranger” não era um estranho qualquer, era “O estrangeiro”.
Todo mês, o leitor Fernando Luna (@fluna) faz um exposed de seu relacionamento íntimo com um livro.
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