Coluna

Bianca Tavolari

As cidades e as coisas

Virtudes e contradições

Do conjunto residencial na periferia aos prédios para a elite, livro percorre a trajetória do arquiteto Ruy Ohtake, morto em novembro do ano passado

01jan2022 | Edição #53

Uma curva formada por um fio pendente, suspenso de maneira livre entre dois pontos fixos. A fórmula matemática é chamada de catenária justamente por representar o desenho de uma corrente — se seguramos em cada uma de suas extremidades, temos um arco com maior ou menor raio de curvatura. Transportar essa forma para o plano da arquitetura não é simples. Não é apenas um arco, é também suspenso; é um fio que se torna curva apenas pela força de seu próprio peso, sem maiores interferências ou apoios externos. Essa é a forma do hotel Unique, uma das obras inconfundíveis de Ruy Ohtake na cidade de São Paulo.

A depender do ângulo de observação de um pedestre que caminha pela calçada da avenida Brigadeiro Luís Antônio, as duas empenas laterais de cimento que seguram o arco de mais de 100 metros de comprimento se tornam mais ou menos visíveis. Essa é uma das razões por que o prédio impressiona: as vigas e os pontos de sustentação não são evidentes. Tampouco é possível ter certeza se o vértice se apoia no módulo envidraçado em formato de onda. O jogo entre visível e invisível também é rebatido na relação entre espaços preenchidos e espaços vazios.

Grande escala

Em um dos capítulos de Ruy Ohtake, arquiteto, o próprio criador explica parte da monumentalidade a Luís Antônio Jorge, que assina o texto “O desenho, a cor e a cidade segundo Ruy Ohtake”: “optou-se por afastar o edifício até o limite possível, um recuo frontal de 35 metros, para que se pudesse contemplá-lo por inteiro, de modo a fazer concordar a intenção plástica e a sua percepção estética ou, em outros termos, a estabelecer a identidade total entre o artefato e o ideal artístico a que ele responde. O arquiteto explica que um prédio de 25 metros (gabarito permitido naquela zona) é banal, mas um vazio de 25 metros de altura é espantoso porque não existe”.

O Unique é uma das representações icônicas de São Paulo. Formas que desafiam a existência em grande escala nos tiram o fôlego. Um barco quebrando uma onda, com suas janelas redondas que lembram escotilhas. Ou, em proposta menos sublime, uma grande fatia de melancia. O prédio nos desconcerta, seja porque rompe na paisagem, seja porque simboliza um espaço de tamanha exclusividade, com vista que é privilégio de muito poucos em um dos bairros mais ricos da cidade.

As obras de Ruy Ohtake não passam despercebidas. Seja pela monumentalidade ou mesmo pelo uso incomum de cores em uma cidade marcada pelo registro do cinza. O hotel Renaissance, com suas listras verticais justapostas que se alternam em tons de rosa e azul, faz eco ao Ohtake Cultural, onde fica o Instituto Tomie Ohtake, no final da Faria Lima. As cores se repetem, mas agora com ondas que marcam a fachada de um complexo de vários edifícios, menos compreensível em sua forma do que as torres do Renaissance — e com a polêmica carambola roxa, objeto de protesto em sua inauguração. O edifício Santa Catarina, na avenida Paulista, também não passou ileso das críticas, com sua torre volumosa espelhada.

As obras não passam despercebidas, seja pela monumentalidade ou pelo uso incomum de cores

Apesar de tamanhas marcas na cidade, a obra e a trajetória de Ruy Ohtake ainda são pouco discutidas ou reconhecidas pela academia. Ruy Ohtake, arquiteto, organizado por Abílio Guerra e Silvana Romano Santos, pretende sanar essa lacuna. Com três ensaios textuais — de Ruth Verde Zein, Luís Antônio Jorge e José Tabacow — e três ensaios fotográficos — de Nelson Kon, Tatewaki Nio e Antonio Saggese —, o livro fornece acesso ao acervo do arquiteto, com desenhos técnicos e croquis de suas principais obras, além de uma importante fortuna crítica.

Ohtake não foi apenas o arquiteto de prédios impactantes para as elites. Menos visíveis para aqueles que não caminham pela periferia, o conjunto residencial e cultural de Heliópolis marca um de seus principais projetos, na maior favela de São Paulo. 

Carinhosamente apelidados de “redondinhos”, os nove prédios cilíndricos com 162 unidades habitacionais são um símbolo de planejamento integrado com a comunidade, cujos moradores participaram ativamente da tomada de decisão sobre suas casas e sobre os equipamentos culturais. A forma redonda impede o agrupamento dos volumes, o que dá vista a todos os apartamentos. Além disso, elimina a fronteira entre uma face iluminada e outra com sombra, ao garantir luz e ventilação. O projeto conta ainda com uma biblioteca comunitária, um edifício chamado Torre da Cidadania, complexo cultural e esportivo que foi integrado a um ceu.

Casa-praça

A proposta corporifica uma de suas ideias de juventude, a casa-praça, discutida com riqueza de detalhes por Ruth Verde Zein no capítulo “Morar na praça”. Para Ohtake, “como arquitetos, procuramos perseguir, no nível do desenho, a tese da cidade contemporânea, tentando generalizar as propostas dos projetos isolados”. Casas abertas para a cidade abriam também a possibilidade de alterar o espaço urbano, ampliando a convivência e as oportunidades de encontro.

Ruy Ohtake morreu em novembro do ano passado. Que suas obras e ideias possam ser debatidas amplamente, em suas virtudes e contradições. E, especialmente, que a construção conjunta com moradores e moradoras de Heliópolis nos lembre que a cidade é muito mais do que está ao alcance imediato de uma visão dos bairros centrais. O livro organizado por Abílio Guerra e Silvana Romano Santos é imprescindível para trilhar esse caminho.

Quem escreveu esse texto

Bianca Tavolari

É professora da Fundação Getúlio Vargas e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Matéria publicada na edição impressa #53 em outubro de 2021.