Coluna

Bianca Tavolari

As cidades e as coisas

Questão de perspectiva

Livro infantojuvenil mostra como a cidade grande impõe aos pequenos a condição de invisibilidade

01out2022 | Edição #62

A sombra de um rosto perfilado junto à janela de um ônibus permanece estática enquanto a paisagem do lado de fora se altera. Da perspectiva da rua, é possível dar contornos a essa sombra. O rosto iluminado pelo vidro é de um menino pequeno. Faz frio, ele usa um gorro com um pompom vermelho. Com a aproximação do ponto, sair do ônibus não é simples: sinalizar a descida envolve esticar-se para alcançar o botão que está no alto e passar por um mar de pessoas em pé até chegar à porta. Ao sair do ônibus, a escala da cidade se impõe. Ele é diminuto em meio a prédios, postes, carros e pedestres. “Eu sei bem como é ser pequenino na cidade”, ele diz.

O livro Pequenino na cidade nos leva por uma cidade grande tendo esse menininho como guia. “As pessoas não te enxergam, e os sons muito altos podem te assustar, às vezes é difícil saber o que fazer.” A ilustrações de Sydney Smith misturam força e delicadeza com maestria. O olhar do menino nos é apresentado em quadros que alteram os pontos de vista: grades à altura dos olhos da criança, prédios vistos por alguém de baixa estatura, uma cidade acinzentada com pontos lavados de amarelo e vermelho, com o preto marcando as sombras e a solidez dos traços das estruturas urbanas.

Não sabemos o nome do menino, mas ele fala diretamente conosco. “As ruas estão sempre cheias. Pode dar a sensação de que sua cabeça está lotada de coisas.” Ele conta sua experiência para um destinatário certo: “Mas eu te conheço. Vai ficar tudo bem. Se quiser, posso te dar alguns conselhos”. Aqui, o narrador estabelece uma conexão direta; quem o lê também é pequeno e pequena na cidade. O laço é de proximidade e de empatia. A cidade grande impõe aos pequenos a condição de invisibilidade. A desorientação em um lugar que não foi pensado para crianças também é compartilhada. Mas o menino de gorro promete que a experiência pode ser outra — basta conhecer por onde se anda.

As sugestões do menino são certeiras e se conectam com lições de urbanismo: “Os becos podem ser bons atalhos. Mas não vá por este aqui. Está escuro demais”. Vielas que fogem das grandes avenidas podem dar a sensação de pertencimento, com escalas menores, mas nem sempre são o caminho mais iluminado ou seguro. A segurança vem de ver e ser visto no espaço aberto. Outros conselhos integram uma geografia particular ao menino, de lugares secretos e próprios: “Há um monte de bons esconderijos, como embaixo desse arbusto de amoreira”.

Revelação

Conforme os conselhos do menino vão se somando aos lugares em seu caminho, as sugestões do pequeno guia vão se tornando inusitadas. “Há um exaustor que sopra um vapor quentinho e tem cheiro de verão. Você pode se aconchegar embaixo dele e tirar uma soneca.” Quem recomendaria tirar uma soneca debaixo de um exaustor no meio da rua? Logo percebemos que não é a legitimidade do menino que deve ser posta em dúvida.

O livro é antes de tudo um exercício de andar pelas ruas buscando o olhar do outro

O que se desloca é o destinatário das recomendações. Pensamos que eram para nós, leitores e leitoras, possivelmente também pequenos e pequenas. Mas não eram: “Este terreno vazio parece um bom lugar para descansar, mas os arbustos têm carrapichos. Eles podem grudar no seu pelo”. O menino sem nome está se dirigindo a um felino. E não é a um gato qualquer, mas um que ele conhece bem. Ele recomenda que o gato vá até os vendedores de peixe simpáticos que estão no final da rua e que ouça música perto da casa em que alguém toca piano e da igreja onde há um coral. Sugere que se empoleirar no beiral da janela é a melhor maneira de aproveitar o concerto. A informação fica evidente quando a ilustração nos mostra que a caminhada do menino tem por objetivo colar cartazes de “procura-se”, com a foto do animal, em um grande parque. Neva, e a imensidão do parque torna o menino ainda menor, com sua figura sobreposta à dos flocos de neve ao vento.

Com sutileza, o livro se transforma em uma narrativa sobre um menino em uma busca, que compartilha sua experiência de ser pequeno na cidade com outras crianças, adotando a perspectiva do gato desaparecido para sugerir lugares seguros, esconderijos e formas de ganhar comida e carinho em um mundo desconhecido. Ele olha para a cidade como um gato faria. O livro de Sydney Smith é antes de tudo um exercício de andar pelas ruas buscando o olhar do outro, que pode ter muitas intersecções com o nosso. Tanto o menino quanto o gato são pequeninos na cidade. E nisso não estão sozinhos, ainda que o menino ande solitário pelas ruas nevadas em sua procura.

Pequenino na cidade é um livro lindo. Abre caminhos para conversar com os pequenos e pequenas sobre suas próprias experiências na cidade, mas não só. Permite pensar deslocamentos de perspectiva: se eu fosse um gato perdido, quais lugares da cidade seriam mais hostis e quais seriam mais receptivos? O espaço construído à nossa volta parece ter sido feito para acolher meninos e gatos, ambos pequeninos? Quais conselhos o pequeno leitor e a pequena leitora dariam para o felino em sua própria cidade? Esse é também um livro para crianças um pouco maiores, para que leiam sozinhas e se percam na infinidade e na inquietude da cidade, seguindo um menino que busca seu gato.

Quem escreveu esse texto

Bianca Tavolari

É professora da Fundação Getúlio Vargas e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Matéria publicada na edição impressa #62 em julho de 2022.