Coluna

Bianca Tavolari

As cidades e as coisas

Progresso e fantasmagoria

Em crônicas de folhetim, um jovem Dostoiévski compara a cidade de São Petersburgo a um filho caçula mimado

01ago2021 | Edição #48

Uma angústia me corroía. A manhã estava enevoada e úmida. Petersburgo despertara zangada e colérica, como uma donzela da sociedade, irritada, amarelada de raiva pelo que lhe acontecera no baile na noite anterior. Petersburgo estava irritada da cabeça aos pés. Se dormira mal, se derramara uma quantidade desproporcional de bílis à noite, se apanhara um resfriado e se se constipara, se perdera no jogo na noite anterior, como um garotinho, a ponto de ter de se levantar de manhã com os bolsos completamente vazios, despeitado com as esposas mimadas e más, com os filhos grosseiros e preguiçosos, com a turba rude de criados com barba por fazer, com os judeus credores, com os conselheiros miseráveis, os caluniadores e todo tipo de outros difamadores — é difícil dizer; o fato é que estava tão zangada que dava tristeza olhar para seus muros enormes e úmidos, para os seus mármores, os seus baixos-relevos.

Mais do que um fragmento sobre a vida urbana de São Petersburgo, esse trecho de crônica se movimenta a partir de uma série de deslocamentos. Começamos com a angústia que invade o narrador, logo transposta para o clima da cidade ao amanhecer. Petersburgo é personificada; a névoa e a umidade passam a ser traços constitutivos de sua personalidade. Expressa emoções e corporifica condutas de diferentes tipos sociais em suas aventuras e peripécias da noite anterior. Fechamos o ciclo voltando à tristeza do narrador, que sinaliza o estado de espírito da cidade e projeta todas essas sensações no espaço construído, de tijolo e pedra. O narrador e a personalidade da cidade estão alinhados e se confundem, mas não é um espelhamento simples. As transposições passam da vida interior para o espaço público, encarnado em figuras da cidade, nas condições climáticas e na arquitetura. Somos apresentados a uma cidade que pulsa, ainda que tenha amanhecido amuada e azeda.

É possível ver Dostoiévski experimentar com narração e estilo e criticar os costumes de sua época

Em 1847, o jovem Fiódor Dostoiévski escreveu cinco crônicas sobre a cidade para a seção dominical de um folhetim. Já havia iniciado uma empreitada no gênero dois anos antes, quando foi introduzido no círculo literário da escola natural e no projeto do almanaque humorístico O Trocista. Além de se interessar pelo formato, capaz de captar as transformações da vida da cidade com mais agilidade, escrevia os textos por encomenda, complementando sua renda enquanto se dedicava a O duplo, romance que publicaria em 1846. As crônicas passaram a ser tratadas como parte integrante da fortuna crítica da obra de Dostoiévski apenas recentemente — e acabam de ser traduzidas do russo para o português por Fátima Bianchi, que também assina a ótima introdução de Crônicas de Petersburgo, publicado pela Editora 34.

Essência e aparência

Não estamos diante de um folhetinista qualquer: cada crônica é uma pequena joia. É possível ver Dostoiévski experimentar com narração e estilo, introduzir figuras dos romances posteriores e criticar os costumes de sua época — especialmente direcionados à replicação de valores europeus na cidade, que importava até os modos de divertimento de Paris e Roma, da ópera ao baile, provocando tédio na elite ilustrada (“Petersburgo se levanta bocejando, cumpre suas obrigações bocejando e volta a dormir bocejando”). Vemos Dostoiévski transitar entre os acontecimentos de sua própria vida e da vida de Petersburgo, articulando escalas da geografia e da intimidade, contrapondo essência e aparência.

Publicadas entre abril e junho, as crônicas captam a cidade no início da primavera, quando as elites fugiam da cidade em direção às casas de campo: “Não é à toa que dizem que Petersburgo é uma cidade tão europeia e tão cheia de afazeres. Ela já fez tanto; então deixem-na em paz, deixem-na descansar em suas datchas e em seus bosques”. A personificação da cidade ganha novos contornos a cada crônica. Além da donzela da alta sociedade e do garotinho infantil, a cidade também é ridicularizada:

Não sei se estou certo, mas sempre imaginei Petersburgo (se me permitem a comparação) como o filhinho caçula e mimado de um paizinho altamente respeitável, um homem dos tempos antigos, rico, generoso, sensato e extremamente bondoso. O paizinho acabou por se retirar de suas funções, se instalou no campo e está feliz da vida por poder, em seu fim de mundo, vestir sua sobrecasaca de algodão grosso sem violar as regras do decoro. Mas o filhinho é entregue à vida, o filhinho deve estudar todas as ciências, o filhinho deve ser um jovem europeu, e o paizinho, embora só tenha tomado conhecimento da ilustração por ouvir dizer, quer a todo custo que o filhinho seja o jovem mais ilustrado da cidade.

Os caprichos do filho mimado não levam exatamente a bons caminhos, mesmo que tudo se passe acima de uma torre de privilégios. Dostoiévski tem os personagens de Balzac e Avenida Niévski, de Gógol, publicado doze anos antes, como referências. A promessa vem carregada de farsa e melancolia. O flâneur nascido em solo petersburguense vive em devaneios que, inevitavelmente, se esfacelam. As crônicas encarnam o espírito do tempo, revelando sua percepção sobre a modernidade: “Aqui não se pode dar um passo sem que se veja, se ouça e se sinta o momento atual e a ideia do tempo presente”. Um tempo presente em que a cidade passava por reformas urbanas importantes, vistas por Dostoiévski como um misto de progresso e fantasmagoria. Agora nós também temos a oportunidade de ser tomados pela mão desse grande ficcionista para descobrir os descaminhos da São Petersburgo de meados do século 19.

Quem escreveu esse texto

Bianca Tavolari

É professora da Fundação Getúlio Vargas e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Matéria publicada na edição impressa #48 em junho de 2021.