Bianca Tavolari
As cidades e as coisas
A forma da água
Joseph Brodsky nos leva ao labirinto de espelhos de Veneza, uma das raras cidades do mundo em que a primazia do automóvel não impera
01out2024 • Atualizado em: 30set2024 | Edição #86 outPara começar a conhecer uma cidade desconhecida, é preciso mobilizar, antes de tudo, os pés. A caminhada permite controlar os ritmos de parada e observação, eleva as chances do encontro e da interpelação, nem que seja para perguntar como se chega a um determinado lugar. Nossos mapas de orientação, mais amplos ou circunscritos, ganham densidade e granularidade com a experiência de ser pedestre, posicionados à escala da rua. E é justamente isso que Veneza desafia:
Deslocar-se pela água, mesmo em distâncias curtas, tem qualquer coisa de primordial. Somos informados de que não deveríamos estar ali não tanto por nossos olhos, ouvidos, nariz, palato ou palma da mão, mas por nossos pés, que se sentem um tanto bizarros na condição de órgãos dos sentidos. A água compromete o princípio da horizontalidade, especialmente à noite, quando sua superfície parece um piso. Por mais sólido que seja seu substituto sob nossos pés — o convés —, na água ficamos como que mais alertas do que em terra, com as faculdades em prontidão.
Em Marca d’água, Joseph Brodsky nos leva para dentro do labirinto sinuoso da cidade italiana, em que a bússola para serpentear por ruas estreitas se desloca. A terra firme dá lugar à dinâmica das marés, em que a acqua alta faz calçadas e canais submergirem. Em meio à água, o sobreaviso é a regra, a percepção fica mais aguda, a distração não pode ser a mesma. Os passos não são evidentes, não se pode fiar neles. A predominância da água também aproxima a experiência urbana da marítima, alterando a cartela de cores, trazendo cheiro de alga, a proximidade com os peixes. E cria uma topografia dominada por espelhos, em que o espaço construído é refletido na enorme superfície, por vezes lisa, por vezes turva, quando agitada por vaporetos, gôndolas e outras embarcações. Veneza é um dos poucos lugares no mundo em que o automóvel não impera.
O ensaísta costura a arquitetura da cidade com a das águas, produzindo espelhamentos múltiplos
Nobel de Literatura, Brodsky é um viajante e, como narrador, nos dá acesso às suas muitas idas a Veneza ao longo dos anos. Há aqui uma peculiaridade: suas visitas se concentram apenas no inverno — “de todo modo, eu jamais viria no verão, nem mesmo se me apontassem uma arma.” O poeta e ensaísta foge deliberadamente do calor, das “emissões de hidrocarbonetos e axilas” e da pele com pouca roupa: “Por mais bem-dotado, o corpo nesta cidade, acredito, deveria ficar oculto sob as vestes, só pelo simples fato de se mover”. Monta, assim, uma Veneza muito distinta da que ocupa o nosso imaginário de cidade vibrante e abarrotada, com gelato em profusão. Uma infância no Báltico o leva à preferência pela sobriedade do inverno, estação em “que tudo é mais duro, mais absoluto”. Ela também serve de referência para a comparação com o Adriático, ao observar padrões da água entre uma memória descrita como não exatamente feliz na Rússia e uma experiência declarada de amor com a Itália.
Mas Marca d’água não é uma ode sem mais. Veneza é luz e sombra, brilho e fantasmagoria:
Em ambas as margens, afundados até os joelhos na água negra como o breu, os enormes gabinetes entalhados dos palazzi escuros, repletos de tesouros insondáveis — ouro, muito provavelmente a julgar pela leve incandescência elétrica e amarelada que se entrevia aqui e ali pelas frestas das persianas. O sentimento geral era mitológico, ciclópico, para ser mais exato: eu havia penetrado aquele infinito que contemplara nos degraus da stazione, e agora me movia entre seus habitantes, ao longo de uma série de ciclopes sonolentos que, […] de tempos em tempos erguiam e baixavam uma pálpebra.
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Bianca Tavolari
A dimensão mitológica evoca espanto e admiração, mas também um fundo de horror. Uma imagem que percorre o livro é a do movimento da enguia, que desliza e serpenteia; um peixe estranho, com pele sem escamas e que escorrega, escapa. É, ao mesmo tempo, um símbolo no quadro de referências infantis associadas ao Báltico e uma superação da infância pelo marcado erotismo. A relação de Brodsky com Veneza não é apenas sensorial, mas profundamente sensual: “Se aquela noite anunciava algum presságio, era apenas que eu jamais possuiria esta cidade”. Veneza é descrita com rosto de mulher, se confunde com Ariadne, e se mescla com o amor não concretizado por uma veneziana, mencionada como “a-única-pessoa-que-eu-conhecia-naquela-cidade”.
Brodsky costura a arquitetura da cidade com a das águas, produzindo espelhamentos múltiplos, num lugar em que todas as coisas existem para serem vistas:
O rendado vertical das fachadas venezianas é o melhor verso que o tempo/água jamais desenhou em terra firme. Além do mais, há sem dúvida uma correspondência — se não uma dependência absoluta — entre a natureza retangular dos ornamentos desse rendado — isto é, os edifícios locais — e a anarquia da água que desdenha a noção de forma. É como se o espaço, consciente […] de sua inferioridade em relação ao tempo, lhe respondesse com a única propriedade que o tempo não possui: a beleza.
O mármore visto a partir da luz íntima do inverno, a poeira que delineia o contorno das superfícies, a contraposição entre as construções e a indefinição da água são pontos de lapidação de um livro de beleza atroz, de um sublime ancorado no cotidiano. Mas as marcas da água não são caminhos seguros, Veneza impõe que o viajante se perca “nas vias e passagens longas e espiraladas que, elusivas, convidam a atravessá-las para ver como terminam e em geral acabam na água, assim nem se pode dizer que se trata de um beco sem saída.”
Matéria publicada na edição impressa #86 out em outubro de 2024. Com o título “A forma da água”
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