Coluna

Bianca Tavolari

As cidades e as coisas

Mitos da gentrificação

Leslie Kern desconstrói narrativas sobre o processo de transformação de bairros pobres em descolados nas cidades grandes

30jan2023 | Edição #66

A história é conhecida. Um bairro relativamente central de uma grande cidade é visto por anos como inóspito e pouco amigável. Praças e parques, se existirem, são malconservados e sujos e abrigam pessoas em situação de rua em barracas improvisadas com papelão. Os prédios já viram dias melhores. Pichações estampam as paredes e os aluguéis baixos atraem aqueles que não têm outra opção. Mercados pequenos de bairro têm as prateleiras cobertas por industrializados. Bares e padarias servem café ruim e barato. É possível que esse bairro esteja perto de alguma fratura exposta da cidade, como uma linha de trem ou um viaduto que o corta no meio, garantindo lugares de difícil passagem e poluição sonora e ambiental. Também é possível que tenha vários espaços vazios, alguns remanescentes de um período industrial que há muito ficou no passado, com galpões e armazéns irrompendo na paisagem. Jornais publicam reportagens que retratam o bairro como degradado e registram a sensação de insegurança de lojistas e pedestres.


Gentrification Is Inevitable and Other Lies, da geógrafa Leslie Kern, traz a gentrificação para o centro do debate

O roteiro dessa história conta com um ponto de virada. Ou não exatamente um ponto, mas um processo que vai lentamente ganhando corpo. Pode começar com grafiteiros que aproveitam o vazio das empenas dos prédios como tela para murais coloridos. Também pode começar com artistas que, atraídos pelos aluguéis baratos, montam seus ateliês, estúdios de fotografia e espaços de ensaio. O começo pode ter inúmeras variações. Os primeiros novos habitantes são seguidos por outros. Festas alternativas em prédios antigos atraem visitantes. Um pequeno café abre na esquina, exalando o cheiro da torra de grãos orgânicos certificados e selecionados. Veículos de mídia menores começam a registrar que finalmente há algo de interessante acontecendo em um território há pouco indesejado; falam de como o antigo e o novo se misturam, celebram a autenticidade desse espaço. Novos moradores começam a surgir, comprando apartamentos por preço abaixo do mercado para reformar, geralmente em espaços amplos e modernos. Os aluguéis sobem lentamente e, a cada salto, moradores antigos precisam procurar outro bairro para morar.

Começam demolições e lançamentos imobiliários e os jornais já anunciam que esse é o lugar para se estar

Aos poucos chegam novos restaurantes, estúdios de ioga, galerias de arte, pequenas livrarias, lojas com design assinado. Começam demolições e novos lançamentos imobiliários, e os jornais de grande circulação já anunciam que esse é o lugar para se estar, comer e passear se você estiver na cidade. Turistas procuram apartamentos no bairro por meio do Airbnb, para colocar em prática a ideia de “viajar como se fosse um local”. Os artistas da primeira onda já não conseguem mais manter seus ateliês em razão dos preços. A prefeitura anuncia projetos de revitalização do bairro em praças ocupadas por moradores em situação de rua, para garantir a segurança dos novos habitantes.

Enquanto alguns entendem que isso nada mais é do que um processo natural de ascensão de bairros desvalorizados em grandes cidades, a literatura urbanística cunhou um termo para nomear e explicar essas transformações: gentrificação. A expressão vem de gentry, uma classe detentora de terras abaixo da aristocracia vitoriana. A socióloga Ruth Glass empregou “gentrificação” pela primeira vez na década de 60 para caracterizar a expulsão de trabalhadores do bairro londrino de Islington, sendo substituídos por moradores mais ricos. Desde então, o conceito tem uma longa trajetória, com distintas acepções. Mas dito de maneira simples, gentrificação é uma espécie de aburguesamento — descreve uma substituição de populações e destaca um componente de classe social. É, portanto, um conceito crítico, utilizado para o diagnóstico e para a denúncia de expulsões e transformações em larga escala em diversas cidades do mundo.

Construções tortas

O novo livro da geógrafa Leslie Kern, autora de Cidade feminista, traz a gentrificação para o centro do debate. Ainda sem tradução para o português, o título — A gentrificação é inevitável e outras mentiras — já anuncia, de saída, a abordagem e a estrutura do volume, organizado a partir de sete mentiras ou imprecisões contadas sobre processos de gentrificação.

O argumento central de Kern é mostrar que não se trata de um processo natural, seja do ponto de vista do uso de imagens biológicas, em que bairros “nascem” e “morrem”, seja da perspectiva de que essas transformações acontecem como mera parte dos ciclos por que passam parcelas do território. Nesse sentido, a autora é contra a essencialização. Além disso, pretende mostrar que não se trata de simples deslocamentos de grupos e classes pelo espaço urbano, fruto de escolhas individuais. Para Kern, a gentrificação é um problema que deve ser devidamente combatido — são bairros inteiros que estão sendo refeitos diante dos nossos olhos. Na sua visão, essas são transformações estruturais, para pior, nos lugares que fizeram as cidades se tornarem especiais, interessantes, locais de progresso e de protesto.

Assim, a primeira mentira é entender a gentrificação como algo natural. A segunda é compreender as transformações como questão de gosto. Marcadores de gosto são elementos imprescindíveis dessas mudanças, e o poder cultural gera efeitos materiais que refazem bairros de maneira substantiva. Dos vinhos biodinâmicos aos avocado toasts, a redefinição simbólica adquire uma força gravitacional que ajuda a explicar a atratividade do ponto de vista da estética. Mas ainda que seja fundamental, resumir esses processos ao gosto é ilusório. E não faz sentido responsabilizar o restaurante vegano, os grafites ou o latte — banir tudo isso não mudaria o cenário mais amplo.

Também seria ilusório entender que a gentrificação é um processo que gira em torno apenas do dinheiro. Kern se volta à teoria do rent gap do geógrafo Neil Smith para falar de potenciais de valorização e de como a gentrificação está baseada na fabricação ativa de desvalorização de espaços urbanos. E há ainda dinâmicas globais importantes que, segundo Kern, devem entrar nessa conta. A desindustrialização das cidades é uma delas, bem como a ideia — formulada por David Harvey com base no pensamento de Marx — de que a acumulação não acontece apenas pela produção de riqueza, mas especialmente por despossessão.

A quarta mentira seria achar que gentrificação envolve apenas uma questão de classe. Kern adota uma perspectiva interseccional, em que classe é tão importante quanto raça, gênero, sexualidade e etnia. A gentrificação opera por múltiplos sistemas de poder. As pessoas expulsas não são apenas mais pobres, mas também racializadas. Especialmente nos Estados Unidos, políticas históricas de exclusão da população negra do acesso à propriedade por meio de ações deliberadas como o redlining, que impedia o financiamento habitacional, capitalizam processos de formação de estigma que estão na base da gentrificação.

Não faz sentido responsabilizar o restaurante vegano, os grafites ou o ‘latte’ — é mais complexo

A quinta ideia equivocada seria entender que a gentrificação diz respeito apenas à remoção forçada que ocorre no espaço físico. Kern defende que despejos têm múltiplas camadas, perduram no tempo e têm aspectos intergeracionais. Mesmo que uma geração não tenha sofrido diretamente com o despejo decorrente da gentrificação, as pessoas carregam essas histórias e se apropriam do espaço da cidade a partir delas. Além disso, é possível sentir os efeitos da gentrificação sem que o despejo tenha de fato acontecido. Para além do aumento dos preços, o aumento do policiamento pode resultar em enquadros aos moradores antigos, que deixam de se sentir parte daquela comunidade.

Já a sexta mentira seria entender a gentrificação como metáfora. Para além do fato de que as palavras que usamos são carregadas de sentido — e projetos de “revitalização” geralmente pressupõem que moradores pobres e integrantes de minorias não são vida —, a gentrificação é um processo violento, marcado por remoções forçadas.

Por fim, a última mentira é entender que é inevitável. Kern compila histórias de resistência à gentrificação e apresenta caminhos de atuação, que incluem tomar controle da propriedade em cooperativas, organizar movimentos de ocupação para pressionar por alterações legislativas e formar coalizões. Mas há também propostas de engajamento para quem quer fazer menos — conhecer a história das remoções do bairro e apoiar grupos de resistência, por exemplo.

Espaços vazios

O livro peca em questões centrais. Gentrificação se torna um processo deliberadamente tão amplo que se confunde com a própria dinâmica do capitalismo. E isso traz problemas explicativos — especialmente porque Kern precisa diferenciar a gentrificação de outras transformações urbanas. Além disso, como a gentrificação se equipara à predação, a autora entende que se trata simplesmente de roubo — e que a própria noção de propriedade deveria ser contestada. Mas, ao mesmo tempo, defende que haja reparação a comunidades indígenas e negras, o que também aconteceria por meio da propriedade. Há também pouca discussão sobre os limites à gentrificação que não sejam a resistência social. Kern tampouco enfrenta a zona cinzenta das transformações urbanas que promovem remoções forçadas de grupos tradicionais estabelecidos, criando narrativas semelhantes sobre a perda de autenticidade e de pertencimento ao território. Ainda assim, o livro já é uma referência incontornável — seja para quem já conhece histórias de bairros passando por gentrificação, seja por quem quer escrevê-las de maneira diferente.

Quem escreveu esse texto

Bianca Tavolari

É professora da Fundação Getúlio Vargas e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Matéria publicada na edição impressa #66 em dezembro de 2022.