
As Cidades e As Coisas,
Londres nos tempos do cólera
Como um médico e um padre ajudaram a acabar com a epidemia que assolou a capital britânica no século 19
01set2020 | Edição #37 set.2020A Londres vitoriana de meados do século 19 era algo próximo de um esgoto a céu aberto. “Nenhuma descrição de Londres daquele período estaria completa se não mencionasse o fedor da cidade”, escreve Steven Johnson. A pestilência que causava náusea e repulsa conecta os dois principais pontos em torno do surto de cólera que acometeu a cidade em 1854: por um lado, a alta densidade urbana combinada à ausência de sistemas de esgoto e de tratamento de água era a marca de aglomerações habitacionais permeadas por dejetos de todos os tipos; por outro, o mau cheiro vinha em grande parte da decomposição por bactérias dessa matéria orgânica abundante. O mapa fantasma conecta essas duas pontas — cidade e micróbios — em uma narrativa científica vibrante, na qual o combate a uma pandemia está intimamente entrelaçado ao que hoje entendemos por vida urbana moderna.
Johnson nos transporta para dentro das casas dos londrinos acometidos pelo cólera, com seus sintomas devastadores: olhos fundos, lábios lívidos, diarreia e morte atingiram bairros inteiros. A obra também nos leva para o interior do fluxo de pensamento obsessivo do médico John Snow e do pároco Henry Whitehead que, cada um a sua maneira, conseguiram juntar as peças do quebra-cabeça que ajudou a desvendar o modo de funcionamento da doença do cólera.
A principal teoria científica da época estava diretamente vinculada aos odores que penetravam nas entranhas da cidade. Médicos e sanitaristas acreditavam que as epidemias eram transmitidas pelo ar, por meio de miasmas, ou seja, pelo conjunto de cheiros fétidos decorrentes da putrefação. Se todo mau cheiro era imediatamente entendido como sinal de doença, era a própria cidade de Londres que se convertia em um corpo enfermo a ser extirpado, especialmente os bairros mais pobres, em que as condições sanitárias eram ainda mais precárias: “Uma espécie de dúvida existencial estendia-se sobre a cidade, uma suspeita não de que Londres fosse imperfeita, mas de que a própria ideia de construir cidades da magnitude de Londres fosse um equívoco”.
Detetive
Snow, um médico em ascensão, desafiou essa teoria com uma série de observações sistemáticas e com investigações dignas de um detetive. Com base em suas descobertas anteriores sobre o uso de gases em anestesias, Snow desconfiava da teoria miasmática. Se o ar fosse o responsável pela transmissão da doença, como era possível que todos os limpadores de dejetos de Londres não tivessem sido contaminados? Quando a epidemia atingiu seu próprio bairro de maneira contundente, o médico deu início a um périplo para organizar informações sobre as pessoas acometidas pela doença. A localização das casas era importante, mas outra variável pareceu ainda mais relevante: as fontes de água utilizadas pelas famílias. A doença atacava primeiro o intestino enquanto o sistema respiratório ficava livre de sua fúria, o que levou à sugestão de que o cólera era ingerido, não inalado.
Com informações sobre as fontes de consumo de água, as diferentes empresas fornecedoras e a arquitetura das fossas que desembocavam nos rios, foi possível traçar padrões espaciais que ajudavam a explicar a origem da epidemia. Suas habilidades como médico e cientista não foram suficientes para convencer a comunidade das descobertas — nem mesmo o padre Whitehead, que tentou a todo custo provar que Snow estava errado, para só depois se juntar a ele em suas investigações.
“Não seria uma pesquisa de laboratório que convenceria de vez as autoridades; nem a própria observação direta do Vibrio cholerae. Seria a conscienciosa e profunda observação da vida urbana e de seus padrões cotidianos”, escreve Johnson.
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Snow não só dispunha de conhecimento científico e da dúvida cética que permeia todo empreendimento de expansão do conhecimento, mas também sabia como o bairro funcionava, tanto que montou um conjunto de hipóteses que colocou a bomba d’água de uma das ruas do Soho como ponto principal para uma solução mais imediata do surto de 1854. A água, aparentemente cristalina e pura a olho nu, era contaminada pelos dejetos que eram jogados no rio. As pessoas não estavam morrendo porque eram pobres ou imorais, nem devido ao ar que inalavam. Morriam porque estavam sendo contaminadas. E o lugar que ocupavam na cidade tinha correlação direta com as mortes. Não por qualquer destino territorial, mas pela organização da estrutura que envolvia ações tão simples quanto beber água e ir ao banheiro.
A descoberta científica de Snow e Whitehead evitou novos surtos de cólera em Londres naquele ano e ganhou o debate público mais amplo. A principal razão para isso foi a criação de um mapa que apresentava o número de mortes por casa, em que cada traço era uma morte. É possível ver sua proximidade das bombas d’água contaminadas. O “mapa fantasma” que dá título ao livro é considerado até hoje uma obra-prima de apresentação visual de informações quantitativas. A principal razão é que era um mapa “organizado tanto ao redor do tempo quanto do espaço: em vez de medir a exata distância entre dois pontos, mede quanto tempo se leva para caminhar de um ponto a outro”.
O mapa fantasma é um livro sobre cidades e pandemia, com o fio instigante dos caminhos tortuosos da descoberta científica. Lê-lo neste momento tão difícil pelo qual passamos é como atravessar um portal. A história de Snow, de Whitehead e do surto de cólera é um conto de prevalência da ciência, abertura a vozes dissonantes, análise de padrões territoriais e quebra de estigmas sociais. É também a consolidação da metrópole como espaço fundamental da vida moderna — esgotos foram construídos, um projeto de saneamento foi implantado. A leitura fornece, ao mesmo tempo, conforto e desalento. E a certeza de que a conexão entre epidemias e espaço urbano ainda vai ganhar muitos capítulos na história.
Matéria publicada na edição impressa #37 set.2020 em julho de 2020.
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