Coluna

Bianca Tavolari

As cidades e as coisas

Encontros possíveis

Livro ilustrado incentiva crianças a pensar sobre mobilidade urbana e a entrar em contato com pessoas diferentes

01out2020 | Edição #38 out.2020

Em um dia de sol, um surfista prende sua prancha em cima do carro, com planos de rumar para o litoral. “Nada pode dar errado!”, a primeira frase de Carona, escrito e ilustrado por Guilherme Karsten, é um prenúncio do que aguarda o protagonista em sua trajetória em direção à praia. O projeto parece simples e exequível em um dia de feriado e céu aberto. Mas o caminho é cheio de solicitações de carona às quais o motorista cede sem maiores rodeios e o carro vai ficando cada vez mais apertado. Cada pedido é acompanhado de uma pequena história sobre o novo personagem. O primeiro encontro é com um mergulhador que, prestes a casar, precisa resgatar as alianças esquecidas no fundo do mar. Em seguida, um herói cansado, um jacaré entediado, um ladrão procurado, uma policial desconfiada, uma menininha assustada, entre outras figuras. 

Carona segue a estrutura de um conto cumulativo. O acréscimo dos personagens em sequência é registrado numa lista. É um recurso que permite lembrar os elos da corrente que vieram antes e antecipar os fatos seguintes. E é também por isso que Carona deve ser lido em voz alta: a repetição cria um ritmo narrativo que, com as rimas, quase se torna uma pequena canção. O único adjetivo que muda é o do surfista: começa “empolgado”, para ver sua situação inicial piorar a cada página, tornando-o “preocupado”, “chateado” e, por fim, “muito irritado”. Com tanto peso, o carro quebra, e o ciclo se fecha com todos os personagens se vendo obrigados a pedir carona.

Confiança

O livro pode ser lido como uma história divertida de aglomeração de personagens inusitados dentro de um carro. Mas também pode ser interpretado por seu pano de fundo. A carona que serve de mote ao livro tem ares de antiguidade. Parados na calçada, os personagens fazem o sinal da mão estendida com o polegar levantado para que o surfista entenda o pedido. E isso não acontece em uma road trip de beira de estrada, mas em um contexto urbano com casas e lojas. A confiança está na base do argumento da história: apesar de não conhecer ninguém, o surfista admite quase todos em seu carro. Se fosse transposta para uma cidade atual, dificilmente o sinal com as mãos geraria uma resposta tão solícita à carona. Não que o compartilhamento de carros com estranhos nos seja incomum. Mas para que o stranger sharing — para utilizar os termos da socióloga e economista Juliet Schor — possa acontecer, há a intermediação de aplicativos e plataformas que conectam a oferta e a demanda de caronas nos centros urbanos, e o motorista costuma estar mais próximo de um trabalhador precarizado do que de um surfista animado. 

Mesmo nessa cidade bucólica, o automóvel falha como transporte de coletividades

O cenário da história tem, portanto, ares de bucolismo. É uma cidade grande o suficiente para justificar a vontade de fugir para a praia. Mas, ao mesmo tempo, os únicos pedestres e transeuntes são aqueles que fazem sinal ao também único carro que passa pela rua. As ilustrações — incríveis, com cores surpreendentes e repletas de estampas — não mostram ninguém passando na rua ou mesmo olhando pelas janelas dos prédios. O carro é o único meio de locomoção, já que a prancha não chega a ver a água do mar. A solidariedade do motorista converte estranhos em passageiros, tornando a viagem coletiva, mas o carro não suporta o peso. Mesmo nessa cidade bucólica, o automóvel falha como transporte de coletividades. Os diferentes encontros inesperados não cabem na máquina motorizada pensada para o uso individual. Quando o carro quebra, não há outra solução que não seja pedir carona, possivelmente para outros motoristas de carros individuais. 

O que aconteceria com o argumento do livro se a cidade não fosse apenas um cenário, mas também apresentasse uma infraestrutura para acolher a solidariedade dos encontros entre estranhos? Como seria se projetos pessoais e bagagens não precisassem ficar amontoados, mas tivessem um espaço adequado? E se o projeto coletivo de ir à praia pudesse ser realizado por meio do transporte público, em ônibus ou trem? 

O premiado Carona diverte por sua estrutura circular, pela repetição ritmada e por personagens simpáticos. Além disso, permite que pequenos leitores e leitoras se perguntem sobre as condições de uma viagem como essa, que extrapola o círculo ampliado das amizades para abarcar desconhecidos, em sua maioria com um destino comum. Os projetos frustrados de ir à praia abrem caminho para pensar sobre as nossas relações em sociedade e, principalmente, para a cidade nas quais os projetos coletivos sejam possíveis.

 Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Bianca Tavolari

É professora da Fundação Getúlio Vargas e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Matéria publicada na edição impressa #38 out.2020 em setembro de 2020.