Coluna

Bianca Tavolari

As cidades e as coisas

Destino do vazio

Livro narra história das ocupações urbanas e elucida a luta por espaços que podem garantir sobrevivência e abrigar necessidades coletivas

01mar2023 | Edição #67

Uma retroescavadeira é guiada lentamente em meio a pilhas de entulho. Há pouco espaço para a operação, os fragmentos de construção se assomam, bloqueando a passagem. Mas o espaço também é escasso porque a máquina é conduzida entre prédios colados uns aos outros, sem recuo ou separação. Por um lado, a alta densidade construtiva eclipsa a escavadeira, pequena entre os edifícios; por outro, a sensação é de destruição desgovernada. A demolição é confrontada com outro tipo de cena, quase como num espelho. Com pés de cabra para romper os lacres de estanho que cobrem portas e janelas, um grupo de pessoas se organiza para dar outro destino às unidades marcadas para serem demolidas. Uma valsa, ao mesmo tempo melancólica e repleta de potência, em que um passo põe abaixo e o outro ocupa vazios destinados à destruição pelo poder público.

Qualquer grande cidade já foi testemunha de cenas como essas, especialmente em meio à implementação de políticas chamadas de “renovação urbana”, em que o destino da infraestrutura construída, de seus usos e de seus vazios é ferrenhamente disputado. Mas estamos diante da especificidade de uma história pouco visível e pouco conhecida.

Ocupar imóveis vazios é enfrentar direitos individuais de propriedade, em que função social é pouco ou nada considerada

Quem caminha pelas ruas arborizadas do Upper West Side, com seus característicos brownstones, dificilmente consegue imaginar que um dos bairros mais luxuosos de Manhattan já foi palco de ocupações por movimentos sociais organizados. Nos anos 60, as energias políticas radicais convergiam para a questão habitacional em Nova York. Diante da precariedade da moradia e dos altos preços dos aluguéis, aproximadamente 150 famílias de imigrantes porto-riquenhos se organizaram no que ficou conhecido como Operation Move-In. Ao mesmo tempo em que o governo municipal combatia cortiços e soluções improvisadas de moradia de quem não tinha uma casa para viver, o grupo corria contra o tempo para abrigar famílias pobres em prédios vazios, carregando móveis e mantimentos, em uma tentativa dupla de conter as demolições e de garantir moradia, em negociações tensas com as autoridades policiais. Liderado por mulheres latinas não brancas, a desigualdade urbana estava no centro tanto quanto os atravessamentos de raça, gênero e imigração.


The Autonomous City: A History of Urban Squatting, do geógrafo Alexsander Vasudevan, ainda sem tradução para o português

Essa é uma das histórias contadas pelo geógrafo Alexsander Vasudevan em The Autonomous City: A History of Urban Squatting, ainda sem tradução para o português. Em inglês, squatting vem de squat (agachar) e dá nome ao que chamamos de ocupação, com a alta voltagem que o termo carrega. Ocupar imóveis vazios é enfrentar uma estrutura institucional assentada na defesa de direitos individuais de propriedade, em que sua função social é pouco ou nada considerada. O inglês nos fornece o vocabulário para nomear a pessoa que ocupa: squatter. Não há equivalente em português; o “ocupante” não designa o mesmo conjunto de sentidos — e não é à toa que o léxico flerta com a criminalização quando se passa a nomear essas formas de luta e resistência de “invasão”, com “invasores” como protagonistas.

Articulações

Para além de reconstruir essas lutas a partir da base da sociedade em cidades norte-americanas e europeias — como Nova York, Londres, Vancouver, Frankfurt, Berlim, Hamburgo, Amsterdam e Copenhague —, o livro defende algumas hipóteses inovadoras. Se olharmos para Nova York, trazer à tona a história de confrontos por moradia não tem apenas o intuito do contraste com a paisagem fornecida hoje por bairros ricos e turísticos, que apagaram esse passado pouco glamuroso. Vasudevan defende que não conseguimos entender as políticas habitacionais sem as infraestruturas de articulação, formação de redes de resistência e de repertório da luta popular formadas ao longo da história dessas cidades. Em outras palavras, o movimento de squatting é decisivo não apenas para conformar a resistência e a imaginação de uma cidade alternativa, mas é fundamental para compreender as instituições.

Nova York talvez nos ofereça o principal ponto de apoio para este argumento. A cidade tem lugar de exceção no pós-guerra, se contrastada com as estratégias de grande parte das cidades norte-americanas, conhecida em prosa e verso: a formação de subúrbios de casas unifamiliares para a classe média, uma política baseada na promoção da titularidade de casas com endividamento por meio de hipotecas, com clivagens de gênero que marcaram o lugar da dona de casa branca no sonho americano. Os subúrbios tão característicos não foram a regra em Nova York. E, para o autor, são justamente a luta social por moradia e seu repertório de imaginação política que ajudam a explicar a diferença.

A tentativa de solucionar o problema da falta de moradia passou pela abertura de caminho para políticas de habitação pública — public housing — e para empreendimentos sociais com valor controlado de locação. Essas políticas não tiveram origem no vazio. A primeira greve em razão dos aumentos dos preços dos aluguéis aconteceu em 1904, no Lower East Side, liderada por imigrantes judias. De 1917 a 1920, a cidade viu alguns dos levantes habitacionais mais radicais de sua história, com a articulação de lutas de imigrantes, socialistas e anarquistas. As Emergency Rent Laws, que regulam aluguéis até hoje, tiveram espaço institucional para serem aprovadas, e organizações fundamentais como a Harlem Tenants League se formaram. Um amplo arco de alianças e redes ao longo do espectro político foi a ancoragem para a articulação do que o autor chama de “uma forma multirracial de ação direta”, que combinava demandas contra a discriminação racial, reivindicações que levaram a noção de justiça para dentro das discussões sobre moradia — fair housing —, somadas a greves de aluguel e ocupações diretas de imóveis vazios. Em 1963, uma das maiores greves de inquilinos aconteceu no Harlem, liderada por moradores negros e porto-riquenhos.

Mas essa dança entre imaginação da luta popular e institucionalização também marca outras cidades. A ideia de prédios vazios ganha outra dimensão na Berlim do pós-guerra, que tem um potente movimento de ocupação. Nem sempre as ocupações lidam com o tema da precariedade da moradia. Muitas vezes se trata da construção de espaços para uma cidade autônoma, gerida de maneira alternativa por coletivos de moradores. Espaços de ocupação artística, cozinhas e jardins comunitários, bibliotecas e outros lugares de práticas do comum são parte fundamental dessa história. Em algumas dessas experiências, ser um squatter não passa pela privação extrema de não ter onde morar, mas por uma identidade de contestação, uma forma de ativismo que reúne novas e velhas formas de protesto coletivo.

Ser ‘squatter’ não passa por não ter onde morar, mas por uma identidade de contestação e forma de ativismo

O livro também explora a violência policial e de Estado em reação às ocupações, até mesmo onde nós, leitores brasileiros, mal poderíamos esperar. Em 2007, a Ungdomshuset [casa da juventude], um pequeno prédio de tijolinhos localizado no bairro de Nørrebro, em Copenhague, foi alvo de despejo. O uso do prédio — que foi rapidamente transformado em um centro social autogerido, tornando-se uma referência de ativismo e de exercício da diferença na capital dinamarquesa — havia sido cedido pelas autoridades municipais em 1982, a fim de aplacar o intenso movimento de jovens da cidade. Em 2000, a prefeitura vendeu a casa, rompendo a concessão de uso para os squatters, que se recusaram a sair, resistindo por sete anos. A operação em 2007 contou com 219 prisões, que causaram protestos que duraram dezesseis semanas e tiveram  um saldo de mais de setecentas pessoas presas, com operações policiais militares milimétricas com bombas de gás lacrimogêneo e outros tipos de armamento. A casa foi demolida e hoje o endereço abriga um terreno vazio, mas não sem marcar profundamente a história das lutas urbanas coletivas de Copenhague, com os maiores atos de rua desde a Segunda Guerra Mundial.

The Autonomous City também é preciso ao mostrar as afinidades entre a repressão a ocupações, com a aprovação de leis de endurecimento de penas contra práticas de squatting por várias cidades nos Estados Unidos e na Europa, e o pós-crise financeira de 2008, em que a habitação e a propriedade imobiliária estavam no centro do estouro da bolha. O livro é um arquivo de valsas populares dançadas a contrapelo, em exercícios constantes de luta pela sobrevivência e por espaços que possam abrigar as necessidades humanas coletivas. Como diz o próprio autor, os squatters e as ocupações dão concretude, carne e movimento para a reivindicação do direito à cidade.

Quem escreveu esse texto

Bianca Tavolari

É professora da Fundação Getúlio Vargas e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Matéria publicada na edição impressa #67 em fevereiro de 2023.