Bianca Tavolari
As cidades e as coisas
Claro enigma
Nova edição traz de volta às livrarias a fundamental contribuição de Walter Benjamin para compreender a cidade moderna
01dez2023 | Edição #76Um bairro extremamente confuso, uma rede de ruas, que anos a fio eu evitara, tornou-se para mim, de um só lance, abarcável numa visão de conjunto, quando um dia uma pessoa amada se mudou para lá. Era como se em sua janela um projetor estivesse instalado e decompusesse a região com feixes de luz.
Esse pequeno texto, intitulado “Primeiros socorros”, é um dos sessenta escritos de Walter Benjamin e reunidos em Rua de mão única. Publicado em 1928, em pleno fervor e crise que marcaram a República de Weimar, estes fragmentos — também chamados de “imagens de pensamento” (Denkfiguren) — desestabilizam o formato de narrativa contínua e claramente encadeada. Podem ser lidos em sequência ou como unidades de sentido próprio.
Rua de mão única, de Walter Benjamin, é dedicado a Asja Lacis, dramaturga letã que abriu caminhos para o pensador em cidades como Riga, Moscou e Nápoles
Em “Primeiros socorros”, o autor registra uma transformação urbana em alguns níveis. Primeiro, marca a estranheza labiríntica do bairro, que fazia com que seus caminhos não atravessassem aquela porção da cidade. A desorientação dá lugar à clareza; mas não só a clareza de pensamentos, que agora conseguem decifrar o que antes era um enigma de redes de ruas, dando sentido — ou “visão de conjunto” — ao que antes parecia inóspito.
O bairro passa a emitir luz própria; não é apenas possível compreendê-lo em seu funcionamento interno, há o desejo de fazê-lo, e a luz atua como um campo magnético sobre o que antes era um enclave urbano que não lhe despertava interesse. O que altera o jogo é o apaixonamento, o amor que se territorializa na cidade, provoca descobertas e expande os horizontes de até onde se pode — e se quer — caminhar.
A influência de Asja Lacis no pensamento de Benjamin foi amplamente minimizada e invisibilizada
Há muitas maneiras de ler Rua de mão única. A nova edição, publicada pela Editora 34, inclui um apêndice com textos que nos permitem trilhar novas interpretações. Além de três resenhas do livro — de ninguém mais, ninguém menos que Siegfried Kracauer, Ernst Bloch e Theodor Adorno —, a edição inclui um texto escrito a quatro mãos por Benjamin e Asja Lacis, sobre a viagem que fizeram a Nápoles, e outro apenas dela, sobre a viagem também conjunta a Capri, em 1924. O livro é dedicado a Lacis, dramaturga letã que trabalhou com Bertolt Brecht — e a dedicatória cita o nome dela como se nomeasse uma rua: “Em homenagem àquela que, na qualidade de engenheiro, a rasgou dentro do autor”.
E aqui conseguimos incluir uma camada a mais de sentido: a pessoa amada é concreta, ela não só provê os primeiros socorros diante de uma ferida, mas a sua presença na cidade permite enxergar sentido onde antes não havia, permite olhares de descoberta e a experiência de que o espaço urbano pode se alterar substancialmente, uma vez que é filtrado pelas lentes do amor. E Walter Benjamin estava, definitivamente, apaixonado.
Outras colunas de
Bianca Tavolari
Como registra Jeanne Marie Gagnebin, organizadora da edição, a influência de Lacis no pensamento de Benjamin foi amplamente minimizada e invisibilizada. Adorno chegou a excluir a dedicatória a ela no primeiro volume de textos reunidos de Benjamin, em 1966. Mas Lacis está lá, não apenas como objeto do amor, mas como interlocutora intelectual e íntima, abrindo também caminhos para ele em cidades como Riga, Moscou e Nápoles. Em “Artigos de papelaria”, lemos: “Ela vive em uma cidade de senhas e mora em um bairro de vocábulos conjurados e irmanados, onde cada rua adota cores e cada palavra tem por eco um grito de batalha”. Enigma, cores e protesto ganham, assim, localização concreta na cidade.
Constituição do fetiche
Mas Rua de mão única também pode ser lido como um ensaio para as Passagens, obra magna inacabada de Benjamin, escrita ao longo de treze anos, desde 1927 até sua trágica morte, em 1940. A centralidade das grandes cidades, a caracterização da modernidade na virada do século 19 para o 20, a constituição do espaço doméstico burguês marcando o interior em oposição ao espaço público, a mercadoria perpassando as relações de troca, mas também consolidando estruturas em ferro e vidro que emolduram vitrines e conferem o brilho necessário para a constituição do fetiche.
Em “Brinquedos”, um texto mais longo, Benjamin escreve:
Riga. O mercado cotidiano, a cidade comprimida de tendas baixas de madeira, estende-se sobre o molhe, um largo, sujo baluarte de pedras sem depósitos, ao longo das águas do Dvina. […] Por toda parte vê-se a mercadoria pintada sobre tabuletas ou pincelada sobre a parede da casa.
Ao anúncio da “mercadoria pintada”, se segue uma riquíssima descrição de cartazes e desenhos que indicam o que é vendido em cada uma das casas do mercado de Riga, antecipando a conexão entre mercadoria e transformação do espaço construído que chegaria ao ápice com as passagens parisienses. “De tais imagens a cidade está repleta: dispostas como se saíssem de gavetas.”
Já “Casa mobiliada. Principesca. Dez cômodos” retrata a criação do interior burguês que será também desenvolvido mais adiante em sua obra. Aqui, o mobiliário da casa, com sua exuberância sem alma, formada por sofás, tapetes drapeados e pesados relógios de madeira, são confortáveis apenas para o cadáver. Benjamin traça a relação entre a constituição desse interior repleto de texturas táteis, com capas de veludo, e a coleção de imagens que determinam personalidade e status, com os romances de crime que evocam o terror da casa. A referência direta aqui é a Edgar Allan Poe e seus contos de assassinato que não acontecem nas ruas, mas dentro da casa burguesa supostamente protegida.
A nova edição de Rua de mão única preserva a ótima tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho e acrescenta mais elementos para que possamos ler, com novas lentes, um dos autores mais importantes e fundamentais da filosofia contemporânea e da Teoria Crítica.
Matéria publicada na edição impressa #76 em novembro de 2023.
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