Coluna

Bianca Tavolari

As cidades e as coisas

A luta pela cidade

Publicado em 1972, clássico de Castells apontou a importância do consumo coletivo e dos movimentos sociais na vida urbana

01ago2020 | Edição #36 ago.2020

Qualquer pessoa que começa a se interessar por estudar cidades inevitavelmente vai deparar com A questão urbana, de Manuel Castells. O livro está muito bem estabelecido na prateleira de clássicos do pensamento urbanístico, junto com referências como O direito à cidade, de Henri Lefebvre, e A justiça social e a cidade, de David Harvey. Além de figurarem como pontos necessários de parada em cursos universitários, esses três livros têm ainda outro aspecto em comum: representam as primeiras tentativas de pensar a urbanização em uma chave de leitura marxista, entre o final da década de 1960 e o início dos anos 1970, dentro da chamada “nova sociologia urbana”. Publicado originalmente em português em 1983, o livro de Castells data originalmente de 1972. Uma nova edição sai agora pela Paz e Terra, o que abre espaço para novas leituras. Clássicos não foram feitos simplesmente para ficar nas estantes: só merecem esse título por terem algo a dizer para além de seu próprio tempo.

A questão urbana não é exatamente fácil de ler. A dificuldade tem alguns pontos de ancoragem. Foi convertido em um grande manual, quando na verdade é estruturado como uma espécie de caderno de anotações, em que leituras vão sendo organizadas em torno das questões que preocupavam Castells à época. Por isso o livro tem capítulos curtos, com referências bibliográficas para cada parte. Por isso também muitas vezes as perguntas são colocadas abertamente, mas não há esboço imediato de resposta. Além do mais, Castells enfrentava um problema específico desse campo: como é possível avançar nas discussões teóricas e práticas sobre a cidade se não há uma delimitação adequada do objeto? É certo que o urbano deveria ter algo a ver com cidades, mas o problema era um tanto maior do que esse. Se as cidades forem apenas expressão de um modo de produção, não haveria razões para tratá-las de maneira distinta da sociedade em geral. Se as cidades forem apenas um pano de fundo que dá contexto para relações sociais variadas, tampouco seria possível afirmar qualquer tipo de especificidade. Esse tipo de pergunta metodológica faz com que Castells promova, antes de tudo, uma limpeza de terreno conceitual. E é por isso que as duas primeiras partes de A questão urbana são dedicadas a discussões com a literatura da época, como os trabalhos da Escola de Chicago e do próprio Lefebvre.

Castells quer evitar, a todo custo, essencializar a forma urbana. Entender a cidade como um aglomerado resultante da concentração, com  densidade relativamente alta e diferenciação funcional e social, seria promover uma separação dessa forma de seus processos históricos e atribuir a ela um papel autônomo de criação de novas relações ou de uma cultura urbana. Se estava claro para ele que as cidades têm de ser pensadas a partir da conformação do sistema capitalista, as maneiras de articular essa abordagem vão sendo construídas em pequenos passos pelas duas últimas partes do livro. É aí que estão, a meu ver, as ideias mais instigantes e interessantes.

Três sistemas

Para Castells, o espaço é conformado por três sistemas: o econômico, o político e o ideológico. A articulação das três dimensões é chamada por ele de sistema urbano. De modo esquemático, o âmbito econômico traz os vínculos entre força de trabalho, meios de produção e não trabalho. Mais concretamente: as atividades de produção na indústria, o consumo de bens no mercado, a circulação das trocas e do comércio. Já o âmbito político endereça a gestão e a regulação desses elementos no espaço e, por fim, o terceiro plano traz os elementos simbólicos traduzidos para a dimensão espacial.

Apresentada hoje, essa ideia pode parecer trivial. Mas tanto o esquema teórico quanto suas diversas consequências foram objeto de intensos embates. Primeiro porque Castells insere o político como elemento fundamental. E, especialmente, porque o consumo ganha tanto destaque quanto a produção. E consumo aqui não é apenas individual ­— o ato de comprar uma mercadoria específica ­—, mas é também consumo coletivo, caracterizado pela intermediação do Estado. Para Castells, boa parte do que configura a questão urbana que dá título ao livro é o fato de que a cidade é o espaço de reprodução da força de trabalho, e isso se dá por meio de equipamentos e serviços públicos, como escolas, creches, hospitais, centros culturais e políticas públicas habitacionais. A dimensão mais estrita da produção — e, portanto, da relação capital-trabalho ­—  está localizada no âmbito de fábricas, escritórios e empresas. Para além do espaço de trabalho, o espaço da cidade é conformado para viabilizar trocas e, tendo o Estado de bem-estar social francês como referência, garantir as condições de vida e reprodução da classe trabalhadora entendida de maneira ampla.

Suas ideias foram importantes para a ‘guinada dos direitos’ na ditadura militar, conquistando a imaginação para além dos muros da academia

É essa chave teórica que permite que Castells olhe para os movimentos sociais urbanos como atores importantes. Isso não era simples, uma vez que as demandas desses movimentos não seguiam necessariamente a contradição capital-trabalho. Pelo contrário, muitas das reivindicações eram direcionadas ao Estado: melhores condições de moradia, educação e saúde, além de participação efetiva na definição dessas políticas. Na última parte do livro, ao olhar para as renovações urbanas de Paris, o foco está nos movimentos populares contra despejos e aluguéis abusivos e em favor da habitação digna. A experiência dos comitês de cidadãos de Montreal serve para tematizar a vida cotidiana nos bairros, e o movimento dos pobladores no Chile é trazido para discutir terra e moradia a partir de ocupações. Os movimentos sociais expressavam as contradições urbanas em suas lutas, e Castells os colocou no centro das discussões sobre as cidades.

A disputa pelos imóveis vazios de São Paulo e a luta pelo direito à moradia

As experiências dos movimentos não são apenas ilustrações, mas envolvimentos práticos do autor. Isso porque A questão urbana foi escrita entre muitos exílios políticos. Fugindo do regime de Franco na Espanha, Castells se exila na França e migra para os estudos sociológicos sob a supervisão de Alain Touraine. Sua participação nos levantes de Maio de 1968 o obriga a fugir para Genebra e, de lá, para uma vaga de professor em Santiago do Chile, com uma passagem pelo Canadá quando o contrato acabou. Volta ao Chile e depois retorna a Paris, quando a ditadura chilena se avizinha. No livro de entrevistas organizado por Geraldine Pflieger com o autor (De la ciudad a las redes — Diálogos com Manuel Castells), Castells menciona que a experiência chilena foi decisiva para perceber a importância das lutas dos movimentos sociais urbanos. Diversos de seus estudos posteriores vão se dedicar em profundidade ao tema, com uma riqueza analítica marcante. The City and the Grassroots, ainda sem tradução para o português, é um de seus livros mais influentes até hoje.

Impacto no Brasil

A questão urbana teve uma longa recepção no Brasil. Na sociologia, o ponto de conexão imediato foi Fernando Henrique Cardoso, docente na Universidade de Nanterre na época em que Castells começava como professor-assistente. Por essa via, as ideias sobre consumo coletivo, reprodução da força de trabalho na cidade e movimentos sociais urbanos se tornaram importantes para os autores que também procuravam articular referências marxistas com nosso próprio modo de produzir cidades na periferia, como Lucio Kowarick. Além disso, como afirma James Holston em Cidadania insurgente, a ideia de “questão urbana e movimentos sociais” foi importante para a “guinada de direitos” na ditadura militar, conquistando a imaginação para além dos muros da academia. Tenho defendido que a recepção da sociedade civil brasileira a essas ideias nas décadas de 1970 e 80 promoveu um amálgama entre propostas que se apresentavam como conflitantes — o conceito de direito à cidade de Lefebvre é combinado com as demandas coletivas direcionadas ao Estado por movimentos sociais, tal como tematizadas por Castells. Essa junção nos ajuda a entender as lutas populares urbanas no Brasil.

A nova edição devolve A questão urbana às livrarias. Que o livro não habite apenas as estantes e as referências bibliográficas entendidas como obrigatórias, mas também um debate amplo e vivo sobre o alcance e a atualização de suas ideias.

Quem escreveu esse texto

Bianca Tavolari

É professora da Fundação Getúlio Vargas e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Matéria publicada na edição impressa #36 ago.2020 em maio de 2020.