Coluna

Bianca Tavolari

As cidades e as coisas

A Constituição das megacidades

Cientista político canadense afirma que as Constituições atuais não contemplam os desafios apresentados pelas grandes metrópoles

01dez2020 | Edição #40 dez.2020

Qualquer pessoa interessada em diagnósticos sobre a centralidade que tribunais ganharam nos arranjos democráticos atuais tem contato, de maneira quase inescapável, com a obra de Ran Hirschl. O cientista político canadense é uma das maiores referências em temas como judicialização da política, empoderamento de tribunais e análise comparada de Constituições. Apesar de não ter sido vertido para o português, seu livro Towards Juristocracy (Em direção à juristocracia, Harvard University Press, 2004) é amplamente mobilizado para pensar o papel de cortes constitucionais, com grande recepção no Brasil. 

No entanto, seu último livro, City, State: Constitutionalism and the Megacity (Cidade, Estado: constitucionalismo e a megacidade), ainda sem previsão de tradução por aqui, representa um ponto de inflexão. Ao se deparar com o silêncio das Constituições acerca das cidades — e das megacidades —, Hirschl propõe um empoderamento político de áreas urbanas com alta densidade populacional, sugerindo que as grandes cidades têm de ser reconhecidas como entes constituintes o quanto antes. Para falar sobre seu novo livro, Hirschl conversou com a Quatro Cinco Um.

Em seu novo livro, , você afirma que existe um um silêncio deliberado na teoria e na prática constitucionais: apesar de vivermos em um mundo cada vez mais urbanizado, as Constituições não tratam de questões urbanas de maneira geral e, além disso, silenciam quando o tema é a representação jurídica das cidades como entidades autônomas. Quando você começou a enxergar as cidades como unidades constituintes?
Eu fico intrigado com frequência com lacunas e pontos cegos científicos. No início de 2018, um aluno meu chamou minha atenção para um novo relatório das Nações Unidas que indicava que 56% da população mundial vivia em cidades e sugeria que, até 2050, essa proporção subiria para 70% – ou 7 bilhões de pessoas. As projeções do relatório para 2100 pareciam quase distópicas, com cidades de 70 ou 80 milhões de habitantes emergindo principalmente no assim chamado Sul Global. Eu tenho estudado Constituições pelos útimos 25 anos e publiquei muito sobre a intersecção entre direito constitucional e política comparada.

Eu estava familiarizado com uma série de abordagens da condição urbana na teoria política e nas ciências sociais. No entanto, não conseguia me lembrar de ler uma única proposta de abordagem comparativa do status constitucional de cidades ao redor do mundo. Alguns dias depois, o premiê de Ontário (a província em que se localiza Toronto, minha cidade natal) reduziu o tamanho da Câmara Municipal de Toronto pela metade no meio da eleição para vereadores.

Não havia nada que a cidade pudesse fazer do ponto de vista constitucional porque o Ato Constitucional de 1867 garante que as cidades são “criaturas das províncias” e não possuem qualquer posição constitucional autônoma. Fiquei intrigado que uma ordem constitucional vitoriana, adotada há 150 anos —  quando a população de Toronto era formada por menos de 50 mil habitantes (agora está em 7,5 milhões) –, continue a determinar o status de uma cidade que abriga 20% da população do Canadá, que é maior do que oito das dez províncias canadenses e recebe todos os imigrantes de segunda geração do país. Rapidamente descobri que, com algumas poucas exceções, as cidades são subrepresentadas nas Constituições de outros países, da Austrália a Alemanha. As cidades nos Estados Unidos, por exemplo, também estão sujeitas ao controle do Estado, o que muitas vezes levou à “preempção” ou à derrubada de leis municipais progressistas por parte de legislaturas estaduais, em temas como controle de armas, salário mínimo, direitos LGBTQ ou políticas para cidades santuário [cidades que abrigam imigrantes ilegais].

Apenas algumas semanas depois, eu estava entre os organizadores de uma grande conferência em Hong Kong – uma das cidades mais agitadas do mundo, governada pela China como uma região administrativa especial. E, por mera coincidência, eu me deparei com dados incríveis sobre as extremas densidades em megacidades como Daca, Mumbai, Manila e Lagos. Naquele momento ficou óbvio para mim que, dada a extensa aglomeração urbana ao redor do mundo, tanto a teoria quanto a prática constitucional deveriam dedicar uma atenção considerável para as cidades e dispender energia criativa para criar um espaço constitucional para elas, o que inclui pensar nas cidades como unidades constituintes.

Você caracteriza as cidades como lugares de rebelião, protesto e resistência ao autoritarismo. Dotar as cidades de mais poder seria uma maneira de dar voz a esses aspectos urbanos. Você acredita que exista algo como uma essência progressista ou democrática nas megacidades?
Cidades apresentam um enorme potencial democrático. Na verdade, muitos dos escritos originais sobre democracia se referem à cidade como tipo ideal de comunidade política. E a partir da experiência da Revolução Francesa ou da Comuna de Paris, passando por lugares mais recentes de levante popular, como a queda do Muro de Berlim, os protestos na praça Tahrir, no Cairo, em Santiago do Chile e em Hong Kong, e as revoltas populares em grandes centros urbanos americanos após a brutalidade policial contra os negros, vemos que as cidades podem se tornar locais de agitação e rebelião. A típica proximidade urbana de grandes contigentes populacionais, as diferenças visíveis entre classes, a alta densidade, os amplos espaços urbanos e os edifícios públicos monumentais criam um ambiente potencialmente perigoso para governos e regimes não democráticos. 

Além disso, a cidade corporifica um senso de pertencimento concreto, não imaginado. A natureza da vida na cidade moderna reúne pessoas de todos os estratos sociais. Na verdade, o que diferencia a metrópole não é apenas sua escala massiva. Grandes cidades são diferentes em razão de sua composição demográfica excepcionalmente diversa e dos desafios únicos em termos de políticas públicas. O que os sociólogos chamam de “superdiversidade” — a intersecção frequente de vários eixos e formas de diversidade, sejam eles socioeconômicos, étnicos, linguísticos, religiosos, sexuais etc. — é a realidade da demografia da metrópole e a essência da vida cotidiana urbana. 

A cidade também pode ser vista como inerentemente mais progressista a partir de outros ângulos. Como Richard Florida e outros autores notaram, ela atrai as assim chamadas “classes criativas”. Em comparação à escala nacional, os formuladores de políticas públicas municipais estão muito mais próximos das pessoas e muitas vezes são mais bem versados nos problemas e desafios de nível micro e médio. Quando consideramos todos esses elementos, existe, de fato, uma essência progressista ou democrática nas megacidades, ainda que não em todos os momentos ou lugares.

O direito à cidade é um ponto de apoio bastante importante para o seu argumento,  caracterizando-o como algo vago e abstrato. Seu livro pode ser lido como uma tentativa de oferecer um conteúdo jurídico concreto ao direito à cidade?
Sim. Concretizar a noção de direito à cidade de Henri Lefebvre por meios, conceitos e argumentos constitucionais era um dos meus principais objetivos ao escrever o livro. O direito à cidade foi amplamente discutido pelo pensamento político crítico e é defendido invocado com frequência por ativistas urbanos e prefeitos progressistas. No entanto, seu sentido e aplicabilidade concretos, para além de sua “pegada” jurídica ou constitucional real, são um tanto vagos.

Para ajudar a efetivar esse direito, é preciso de um vocabulário concreto e de uma caixa de ferramentas constitucional. Tento fazer isso na medida em que adapto conceitos constitucionais como subsidiariedade, padrões da comunidade, justiça eleitoral, paridade de votos, equalização fiscal e elementos dos direitos econômicos e sociais (para citar alguns exemplos) para o contexto da realidade da metrópole.

O Brasil desempenha um papel importante no argumento do livro, em que o constitucionalismo vibrante do Sul Global é comparado ao estatismo espacial do “Velho Mundo”. Quando fala da Constituição brasileira e do Estatuto da Cidade, você afirma que os resultados foram modestos, especialmente em razão da dependência de alinhamento entre diferentes esferas políticas. Como você vê o caminho trilhado pelo Brasil nesse esquema analítico mais amplo?
O Brasil é muito importante para qualquer análise comparada a respeito do status constitucional das cidades. Pode ser visto como um pioneiro global por ter tematizado o desafio urbano de maneira constitucional. A Constituição de 1988 reflete uma longa tradição de respeito ao governo local, mas ela também introduz aspectos novos, como os artigos 182 e 183 [sobre política urbana] — até onde eu conheço, são os primeiros com essas características na memória constitucional recente. Quando combinado com o Estatuto da Cidade [2001] e com a criação do Ministério das Cidades [agora defunto], o arranjo constitucional e jurídico brasileiro é um estudo de caso precioso para entender os diferentes vícios e virtudes de constitucionalizar o direito à cidade. 

 ‘A alta densidade das cidades cria um ambiente perigoso para regimes não democráticos’

No que diz respeito à importância considerável do fator político para explicar as lacunas entre direitos e realidades, eu posicionaria a experiência brasileira em algum lugar no meio das experiências da África do Sul, em que a proteção pós-apartheid das cidades pela Constituição de 1996 se mostrou bastante efetiva, e da Índia, em que a adoção de uma emenda constitucional em 1993 falhou em transmutar a hegemonia preexistente dos governos estaduais sobre as cidades indianas, algumas das quais estão entre as maiores do mundo.

O último capítulo do seu livro sugere propostas bastante interessantes e ousadas para conferir mais poder às cidades por meio de Constituições. Você propõe a criação de distritos eleitorais com composição misturada entre áreas urbanas e rurais, além de dar mais voz política a lugares com altas densidades involuntárias, como favelas. Como essas propostas se relacionam? 
Nós estamos vivendo no “século da cidade”. Ao mesmo tempo, a divisa urbano/rural se manifesta como um eixo central de separação em um número cada vez maior de países. Precisamos pensar de maneira criativa a respeito de como tratar das necessidades das cidades e como deixar que elas lidem com grandes desafios — como representação política, proteção ambiental ou habitação acessível —, sem alienar ainda mais os eleitores não urbanos. 

Nesse contexto, sugiro uma série de propostas ousadas, o que inclui o aumento de representação em lugares de densidade extrema e involuntária, distritos eleitorais urbano-rurais, equalização fiscal intrametrópole e intra-Estado e várias outras. O denominador comum dessas propostas é a transformação de como pensamos sobre o governo do ponto de vista do espaço, o que é algo que o pensamento constitucional tende a negligenciar. Situações de extrema densidade raramente são tratadas por abordagens constitucionais estatais concebidas no século 19 ou no início do 20. 

Infelizmente, elas podem impactar de maneira dramática as expectativas de vida e as perspectivas de efetivação de direitos econômicos e sociais, como estamos vendo com a atual pandemia, em que medidas básicas de distanciamento social e higiene estão fora do alcance para aqueles que vivem involuntariamente em densidades extremas. De maneira mais geral, entidades que não se encaixam dentro da moldura espacial do modo de pensamento constitucional clássico, westfaliano — sejam elas cidades com alta densidade ou comunidades indígenas remotas —, são geralmente sub-representadas e, de fato, encontram obstáculos significativos para fazer com que suas causas sejam ouvidas pelos meios constitucionais convencionais. Nosso papel como pesquisadores e pensadores é colocar novas ideias na mesa. O papel dos ativistas políticos, muitos dos quais se reúnem em contextos urbanos e vivem em diferentes bairros, é promover a concretização dessas novas ideias.

Quem escreveu esse texto

Bianca Tavolari

É professora da Fundação Getúlio Vargas e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Matéria publicada na edição impressa #40 dez.2020 em novembro de 2020.