Coluna

Bianca Tavolari

As cidades e as coisas

A aventura do pedestre

Morto em março em consequência do coronavírus, Michael Sorkin entrelaçou relato pessoal à história do urbanismo em livro sobre NY

01jun2020 | Edição #34 jun.2020

Quando vivemos por algum tempo em uma cidade, desenvolvemos uma espécie de geografia privada, uma cartografia particular que registra nossas escolhas de itinerários, os caminhos que percorremos e que acabam por se tornar familiares e cotidianos. “Cada um de nós traz consigo um mapa privado como esse, que é revisado toda vez que saímos pela porta. Esses mapas não trazem apenas consequências para os nossos sentimentos em relação à cidade, mas para nossa habilidade literal de negociar com ela”, escreve Michael Sorkin em Twenty Minutes in Manhattan [Vinte minutos em Manhattan], ainda sem tradução para o português. 

O livro é uma preciosidade que registra justamente os ritmos e as impressões de uma caminhada trilhada  por anos pelo autor por Nova York, partindo de sua casa no Village até seu escritório em Tribeca. “Eu fico feliz que Sorkin não use o metrô”, afirma Mike Davis na quarta capa da edição do livro em inglês, “Esse é o mais brilhante epítome já escrito sobre Manhattan.”

Sorkin não oferece um ponto de vista único sobre seu percurso diário ao longo de quinze quadras. O encantamento está no jogo com as escalas, no cruzamento entre as diferentes camadas que compõem o movimento do trajeto realizado por esse arquiteto, urbanista e escritor arguto. A partir das escadas de seu prédio baixo de tijolos, Sorkin nos guia pelas alterações de espaço-tempo envolvidas em subir e descer degraus — há algo de hipnótico nos lances de escada, diz ele — e pelos olhares dos viajantes verticais nos diferentes acessos a pavimentos distintos dentro das edificações. Em poucos passos, somos levados a conhecer as métricas arquitetônicas que compõem um degrau confortável para a escala humana, a regulação das escadas de incêndio de Nova York, a história do estabelecimento de limites de altura para os prédios e as diferentes leis de zoneamento e padrões urbanísticos das ruas da cidade. 

Cada detalhe dessa caminhada entrelaça um aspecto pessoal com uma teia vibrante de elementos da história do urbanismo, da legislação e do pensamento sobre a cidade. Ao contar sobre uma de suas vizinhas ativistas, Sorkin abre caminho para discutir a importância dos aluguéis com valor controlado pelo Estado, para manter a diversidade de classes sociais e de perspectivas em bairros bem localizados. Ao passar em frente a uma praça, o autor mergulha nas marcas deixadas por protestos e repressões a manifestações no espaço público. 

A mensagem de Sorkin é que a arquitetura precisa se colocar contra o totalitarismo

Quando se aproxima do Soho, suas impressões pessoais são combinadas com discussões sobre a expulsão de grupos vulneráveis e a consolidação de padrões urbanísticos desiguais, com recortes de raça e classe, especialmente voltados para o problema habitacional: “Os bairros, é claro, mudam com o tempo. Mas bairros não são como gerações, grupos fixos que marcham juntos através da experiência: eles abrigam múltiplas sincronicidades. A continuidade de um bairro recai sobre questões de posse individual, do caráter do tecido físico, da combinação de pessoas e atividades e dos diferentes meios pelos quais esses valores são comunicados. Há uma elaborada reciprocidade em torno desses elementos e, da mesma forma que as pessoas produzem os bairros, os bairros produzem as pessoas”.

Arquitetura antitotalitária

Por mais que haja leveza no ritmo narrativo adotado no livro, Sorkin não é um flâneur. Não é uma caminhada a esmo, parte de um devaneio de um observador ocioso que se deixa levar pela deriva. Sorkin sabe aonde quer chegar e as conexões entre elementos pessoais e a dimensão coletiva não são fortuitas. Estamos diante de um relato apaixonado pela convivência em meio à diferença e por uma negociação com a cidade que propõe a abertura de espaços mais democráticos e mais inclusivos. É um olhar que nos leva da descrição dos alpendres e pilastras para as desigualdades sociais que atravessam Nova York. Ele certamente bebe na fonte do famoso balé da cidade apresentado por Jane Jacobs em Morte e vida de grandes cidades, de 1961, em que diferentes grupos sociais passavam por uma rua ao longo do dia, com diferentes ritmos e marcas de espontaneidade.

Mas Sorkin é comprometido com uma causa e não faz a menor questão de esconder isso. A mensagem é explícita em um de seus textos incluídos na coletânea What Goes Up: The Right and Wrongs to the City [Aquilo que sobe: o direito e os erros da cidade], publicada em 2018: a arquitetura precisa se colocar contra o totalitarismo. Até mesmo porque “toda arquitetura distribui: massa, espaço, materiais, privilégios, acesso, sentido, abrigo, direitos”. Não é por outra razão que o autor fala em um direito coletivo à cidade, como permissão de acesso à vida urbana que existe, mas também como participação democrática para moldar uma cidade diferente, ainda não imaginada.

Essa aventura pedestre de Twenty Minutes in Manhattan também nos mostra que Sorkin prestava muita atenção: o que é aparentemente banal, as relações sociais, o que liga os pontos entre o ambiente construído e o modo como as pessoas vivem. Não são apenas seus muitos livros que carregam essa marca. Como diretor do programa de desenho urbano do City College de Nova York, inspirou alunos e alunas a mobilizar a arquitetura como ferramenta democrática de transformação social e atuou para que o prédio da faculdade se tornasse um espaço seguro para estudantes imigrantes e sem documentos formalizados nos Estados Unidos da era Trump. Dividia-se ainda entre um escritório de arquitetura comercial e outro voltado apenas para projetos sociais.

Michael Sorkin faleceu no dia 26 de março deste ano, vítima das consequências devastadoras do novo coronavírus. Que a gente possa aprender com seus textos que a negociação com a cidade passa por nossas histórias pessoais e pela dimensão coletiva que nos molda. Que a arquitetura distribui — e distribui de maneira desigual. Que a gente consiga ver beleza e redescobrir nossos mapas privados quando for possível andar novamente pelas cidades. E que possamos estar atentos ao que parece desimportante, especialmente em momentos tão difíceis e com tantos itinerários particulares que são interrompidos antes do tempo.

Quem escreveu esse texto

Bianca Tavolari

É professora da Fundação Getúlio Vargas e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Matéria publicada na edição impressa #34 jun.2020 em maio de 2020.