Teatro,

Shakespeare visto da coxia

Nas suas memórias sobre 70 anos de suas montagens do Bardo, Peter Brook demonstra que é no palco que o conhecemos melhor

09nov2018 | Edição #4 ago.2017

Folheei meu exemplar de Shakespeare: A invenção do humano, de Harold Bloom, para incluir uma citação nesta resenha das recém-lançadas Reflexões sobre Shakespeare de Peter Brook. Eu me lembrava de uma afirmação do crítico norte-americano segundo a qual nenhum ator, por mais brilhante que fosse, seria capaz de alcançar a profundidade, a beleza e o espanto que a leitura de Shakespeare possui e provoca. Sua obra, mais do que teatro, é poesia, e se prestaria antes para ser lida do que representada.

Não encontrei a passagem, mas, depois de folhear e reler o livro, ficou a sensação de que essa percepção é verdadeira. De John Gielgud, o mais memorável Hamlet a que o professor já assistiu, à recente “paródia grotesca feita por Ralph Fiennes, motivo de tamanho embaraço para os respectivos diretor e ator, que Fiennes não mais que balbuciou grande parte do monólogo (ser ou não ser) fora de cena”, Bloom confirma a impressão de que é lendo Shakespeare que se chega a Shakespeare.

O crítico detesta a “bestialidade orgiástica” da histórica versão de Peter Brook para Sonho de uma noite de verão [1970-72], bem como o “Caliban Homem de Java” de sua montagem de A tempestade. “Hamlet sobrevive a tudo, até mesmo a Peter Brook”: eis a última menção ao diretor no longo estudo sobre o gênio inglês.

O desdém de Bloom por Brook não diminui nem a um, nem a outro. São dois gigantes. As 128 páginas de Reflexões sobre Shakespeare não pretendem atingir a seriedade acadêmica nem o escopo das 750 que o professor dedica ao Bardo. O livro de Brook é composto por sutis recordações que tratam da experiência concreta, prática, que Bloom jamais experimentou, de tentar dar cor, alma, corpo e voz à inalcançável poética do dramaturgo.

“A palavra escrita não vive no passado: é uma fonte sempre capaz de criar e habitar novas formas”, diz o diretor. Bloom torce o nariz para os experimentos formais de Brook, mas só este conhece, na essência, o que é ser o que Shakespeare foi: um homem de teatro.

O ponto de partida é a pergunta que volta e meia retorna: afinal, quem escreveu Shakespeare? Há os que acreditam que só um nobre possuiria a cultura necessária para criar uma obra tão vasta; outros levantam a hipótese de que por trás do nome se esconderia um coletivo de autores. Para Brook, a prova de que Shakespeare existiu é o fato de Mozart ter existido. “A combinação de elementos genéticos — ou planetários, caso o leitor prefira — que presidiu sua aparição no útero materno é de tal modo assombrosa que só pode acontecer uma vez em muitos milênios”, conclui.

Brook dedica o primeiro capítulo a soterrar teorias conspiratórias, provando o que qualquer profissional familiarizado com a prática teatral é capaz de perceber: que William estava ali, autor e ator, atento à reação da plateia, cortando cenas, acrescentando diálogos, aparando arestas, trabalhando em coletivo com a sua companhia, lapidando e testando um material vivo, como até hoje se faz.

Para Brook, a prova de que Shakespeare existiu é o fato de Mozart ter existido

E é a partir da coxia, da repetição dos ensaios, da relação com os atores e da labuta em cima do palco que Brook reflete sobre seu histórico de tentativas, erros e acertos com Shakespeare. Num fracassado Romeu e Julieta, em Stratford-upon-Avon (1970), ele descobre que a dramaturgia do Bardo não se presta à lógica do teatro moderno, com atos e cenas isoladas. Deve ser abordada como partitura sinfônica, melódica, na qual uma cena desemboca na outra, que deságua na próxima, até formar uma onda potente e ininterrupta. Lição que ele leva para cada texto que dirige. Com vasta experiência, Brook nos faz ver que o repertório de Shakespeare se comunica e se completa, com personagens que dialogam.

A clemência pedida por Próspero, ao fim de A tempestade, última criação do autor, é a mesma exigida por Pórcia no Mercador de Veneza. O perdão, que desce do céu feito chuva fina e abençoa a quem dá e recebe, não difere da força que assalta, obtém mercê e liberta o mago, ao cair do pano. “Podemos notar o fio que, passando por tantos bons e maus duques, nos leva até Próspero. Porém, no caminho, descobrimos o único caso em que todas essas facetas humanas, de força e fraqueza, encontram-se em apenas um personagem: Lear.”

Uma comédia jovem e dançante como Trabalhos de amor perdidos, “plena de todas as imagens que lhe trazem os sentimentos da vida”, termina com um mensageiro anunciando a morte do pai da princesa da França. “Um grupo de pessoas, que vivia alegremente num mundo encantado, de repente se vê obrigado a reconhecer que esse mundo é somente uma parte, e não a totalidade da existência”, escreve Brook.

Nesse jogo de claro e escuro, ele traça uma reta que liga Trabalhos de amor perdidos a Conto de inverno, peça que apresenta “uma das mais profundas e surpreendentes invenções cênicas de Shakespeare”: a estátua de Hermione, vítima da loucura do marido ciumento, ao final ganha vida e irradia perdão e amor.

Brook dirigiu comédias, tragédias e dramas históricos, sempre atento ao que se esconde por trás da ideia pré-concebida, da caricatura e dos dogmas que se criaram em torno de um milagre chamado William Shakespeare. Seja na atenção que dispensa aos mensageiros da morte, em Trabalhos de amor perdidos, seja na relutância em tratar Lear como um rei babão, Brook se atém ao sentido do que está escrito e testa-o sobre o tablado.

O último pedido de Próspero, no desfecho de A tempestade, costuma ser encenado como um mero “caros amigos, a peça chegou ao fim; gostaria de agradecer ao cenógrafo e aos músicos; por favor, vamos aplaudi-los, assim podemos todos ir para casa”. Mas, indaga Brook, que ator é capaz de iniciar um derradeiro clamor ao público com “Meu fim será desesperação” leve como um boa-noite, obrigado? “Um dos maiores perigos […], que todos nós corremos quando dirigimos Shakespeare, é o da tendência a simplificar e reduzir”, alerta. Ele trabalhou com os grandes atores shakespearianos e sabe diagnosticar, por exemplo, a raiz do fracasso do rei Lear de Laurence Olivier. “É um erro muito infeliz para atores e diretores mostrar Lear na primeira cena como um homem debilitado e já senil. Até mesmo Laurence Olivier foi pego por essa armadilha.”

Dirigiu a estupenda Lavínia de Vivien Leigh, em Tito Andrônico, para a Royal Shakespeare Company, e acompanhou os primeiros sinais de loucura da atriz, durante a temporada europeia. E admira o “profundo e instantâneo senso de significação” com que John Gielgud domina os versos de Shakespeare — “o movimento da sua língua era parte inseparável do movimento do seu pensar”.

Com 92 anos e um currículo que inclui direção para a Royal Shakespeare e a Royal Opera House, Brook acabou por estabelecer um centro de pesquisa teatral no velho teatro Bouffes du Nord, em Paris, na década de 70. Lá, fundou uma companhia multicultural de atores, dançarinos e músicos, que lhe permitiu vivenciar a amplidão de Shakespeare para além da Inglaterra: “O excepcional ator africano Sotigui Kouyaté, em A tempestade, trouxe para Próspero uma cultura na qual o invisível sempre fazia parte da natureza, parte de sua experiência cotidiana. Ocorria o mesmo com Bakary Sangaré como Ariel. Aquele Ariel tinha um corpo poderoso, atlético, nada parecido com o corpo de dançarinos ágeis que estamos acostumados a ver”.

Influenciado pelo teatro da crueldade de Artaud, Brook jamais se curvou a doutrinas e convenções clássicas, embora as conheça a fundo. Lutou para, como diz o crítico Jan Kott no título de um livro célebre, tornar Shakespeare nosso contemporâneo. 

Ao invés de Harold Pinter, que se expressa nas entrelinhas, a ação em Shakespeare se dá nas palavras. Seus versos respeitam o pentâmetro iâmbico. Cada frase é composta por dez sílabas e existem regras rítmicas para dizê-las, como na música. Regras que os atores ingleses dominam como nenhum outro, mas que Brook prefere relativizar. “Quando trabalhei pela primeira vez em Stratford, esperava-se dos atores uma bela dicção, ressonância e volume. Se fizessem isso, diziam-lhes que as palavras falariam por si só. Na minha primeira montagem de uma peça de Shakespeare, Vida e morte do rei João [1945], no Birmingham Repertory Theatre, eu chamava o núcleo dos velhos e leais atores de ‘os barões tonitruantes’.” 

O ator deve buscar antes o sentido do que a forma e ser mais do que uma casca vazia que declama palavras, palavras, palavras. “Até recentemente, o ator shakespeariano tinha de ser ensinado dentro das regras da métrica — as dez pulsações, as possíveis divisões cinco por cinco, as paradas ao término de cada verso e assim por diante — antes de ser posto em contato com a fonte de inspiração do autor e antes ainda de entrar em contato com a forma, com o padrão, e com o ritmo do próprio pensamento. Pois um pensamento verdadeiro tem um sentimento, e é o sentimento que, por sua vez, faz a música fluir.”

Como muitos atores brasileiros, sou atriz por instinto, me considero analfabeta em termos de métrica e mal consigo soletrar o pentâmetro iâmbico. Recentemente, participei de uma oficina ministrada por Yolanda Vazquez, atriz e diretora residente do Globe Theater, de Londres, mestre na arte da versificação. Com ela, descobri que, na língua inglesa, dez é a média de sílabas faladas numa única respiração e serve de medida para compor uma frase. Nas línguas latinas, a média é catorze, devido à presença sonora das vogais.

Hamlet insiste na prosa, enquanto Ofélia tenta arrastá-lo para o verso. Ele usa a cabeça; ela, o coração

Experimente: diga uma frase corriqueira e conte as sílabas, elas estarão entre doze e dezesseis. A diferença para a forma compactada do inglês explica a dificuldade da tradução, que parece precisar do dobro de palavras para dizer o mesmo. As montagens brasileiras acabam por ignorar a melodia e o tempo das rimas, tratando tudo como prosa, embora a distinção entre prosa e verso seja crucial na obra do Bardo. Na cena de Hamlet com Ofélia, em que o príncipe a manda para um convento, descobri com Yolanda Vazquez que ele insiste na prosa, enquanto ela tenta arrastá-lo para o verso. Hamlet usa a cabeça, e Ofélia, o coração. O mesmo se dá entre Brutus e Marco Antônio no enterro de Júlio César. Brutus elege a prosa, e Marco Antônio, o verso.

Na oficina, tive a oportunidade de experimentar ser Hamlet, na cena do convento com Ofélia. Quando a li pela primeira vez, mal pude dar conta do que dizia o autor. O diálogo me pareceu obscuro, e a intenção do príncipe, indecifrável. Tive medo e pensei que Bloom, afinal, tinha razão. Melhor ler, jamais fazer. Cumpri uma série de exercícios que se atinham aos pontos e às vírgulas do texto, à curva de cada raciocínio, até pôr a cena minimamente de pé.

No dia em que a atriz carioca Alice Wegmann e eu expusemos nossa modesta parceria aos colegas de curso, fomos surpreendidas pela intensidade do diálogo, algo maior do que supúnhamos, que ia além da nossa compreensão. Éramos duas iletradas em matéria de Shakespeare e, mesmo assim, ele nos dirigia da tumba.

O mesmo se deu nas cenas apresentadas pelos colegas. Lidas, elas não tinham a metade da força que adquiriam quando exploradas em cena. O jogo de equívocos do diálogo entre Otelo e Desdêmona; a artimanha de Malcolm ao testar a fidelidade de Macduff, em Macbeth; o misto de humor e tragédia na conversa de Emília e Desdêmona, antes de sua morte.

Nenhuma cena começava como acabava, havia sempre uma transformação. Nenhum personagem estava alinhado com o pensamento do outro; os embates, os mal-entendidos se sucediam, criando o suspense e a ação. A tensão visava, claramente, prender a atenção do público. O espectador, em Shakespeare, é quem possui a compreensão elevada dos equívocos e se revira na cadeira, incapaz de evitar a tragédia ou o ridículo dos personagens. É quase possível ouvir a turba aos gritos no Globe.

Ao fim do curso, invejei a intimidade dos ingleses com o Bardo, o fato de o aprenderem na escola, de nascerem sabendo. “Os barões tonitruantes”, os velhos atores preparados segundo o cânone shakespeariano, podem ter servido de chacota para Brook, que ambicionava um teatro visceral, vivo, dotado de alma. Para quem não tem nem escola formal nem familiaridade com o gênio, poder declamar os seus versos em alto e bom som já dá um bom caldo.

Assisti a uma montagem de Henrique V, com Jude Law, no West End, em Londres. Law é um ator carismático, físico, atacava o rei com bravura, humor e agressividade. Suava, corria, se imolava. Era bom, Law tem experiência de palco e carrega Hamlet e Doctor Faustus no currículo. De repente, no entanto, um velho ator entrou em cena e deu suas falas sem se mexer, a voz tonitruante, como diz Brook, ecoou na plateia e os versos alfinetaram com clareza os ouvidos. A técnica, afinal, tem seu valor.

Na versão de Hamlet de José Celso Martinez Corrêa, a Ofélia de Leona Cavalli e o rei Cláudio de Alexandre Borges dominavam a arena. Cláudio era o grande antagonista, tão forte quanto Hamlet. Em outras encenações que presenciei, o rei golpista não passava de um coadjuvante pálido.

Na recente montagem a que assisti, com Benedict Cumberbatch na pele do príncipe, a diretora Lindsey Turner decidiu eliminar a expectativa, deslocando o monólogo “Ser ou não ser” para a abertura. Dado o terceiro sinal, Cumberbatch caminhou até a boca de cena e se livrou do fardo. Depois, no desenrolar do espetáculo, sentia-se uma falta tremenda do solilóquio no lugar de origem.

A obra de Shakespeare é mais do que um longo poema, trata-se de uma renda, um trançado de possibilidades que se modifica, amplia, se reduz e se multiplica conforme o gosto e o talento de quem se dispõe a enfrentá-la. É teatro, vive da cena, embora cause arrepios sublimes quando lida a sós, à luz de uma vela.

O livro de Brook reafirma o teatro como origem e destino daquela poética. E ensina a não tirar conclusões, a não ter ideias mirabolantes nem a sucumbir a interpretações caricatas antes de aguçar a escuta para o que esse monstro de autor tem a dizer. Brook condena um hábito que virou moda no teatro moderno: o do pós-conceito da peça. A famigerada visão do diretor. A experimentação de Brook o levou a um teatro limpo, que se reduz a um tapete sobre o palco. Menos é mais. É preciso mergulhar para dentro, não se exibir em saltos triplos mortais para fora. “Qualquer cena de Shakespeare pode ser vulgarizada, tornar-se quase irreconhecível, por causa do desejo de aplicar-lhe um conceito moderno. […] Qualquer forma é possível se for descoberta pela investigação cada vez mais profunda da história, buscando no interior das palavras e dos seres humanos, os quais chamamos personagens. Se o conceito for imposto antes por uma inteligência dominadora, todas as portas serão fechadas.”

O espectador é quem possui a compreensão elevada dos equívocos e se revira na cadeira, incapaz de evitar a tragédia ou o ridículo dos personagens

Brook, que, inspirado no Circo de Pequim, acreditou que Sonho de uma noite de verão aguardava uma forma inesperada de encenação por ser descoberta; que ousou, no início da carreira, em Stratford, trabalhar com um elenco de jovens intérpretes em Romeo e Julieta [1947]; que criou uma companhia multicultural; que bebeu em Artaud; que esteve atento a Julien Beck e Grotowski; que trouxe para o palco o Mahabarata e os distúrbios neurológicos estudados por Oliver Sacks; Brook sabe que para atingir a plena potência de um resultado é preciso pagar o preço de um sensível e paciente jogo de tentativas e erros.

Tentativa e erro, é assim que ele entende o teatro. E é o seu argumento para provar que Shakespeare existiu. Um poeta, sem dúvida, como afirma Bloom, mas não um poeta de gabinete. A longa trajetória de Brook como diretor prova que a abrangência poética de Shakespeare é fruto de um milagre genético, mas também de um homem que, assim como ele, no dia a dia da coxia, aprimorou sua arte.

Quem escreveu esse texto

Fernanda Torres

Atriz, publicou Fim (romance) e Sete anos (crônicas), ambos pela Companhia das Letras.

Matéria publicada na edição impressa #4 ago.2017 em junho de 2018.